domingo, 5 de dezembro de 2010

As Trouxas da América - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Nos tempos distantes da nossa meninice a palavra vestuário ainda não estava na moda nem esta influenciava a maneira de vestir de ninguém. Havia a preocupação, no Inverno, de se aconchegar o corpo às combinações e ceroulas de flanela que, para não arrefecerem, se usavam dia e noite. A roupa de vestir, propriamente dita, não se alterava com as demais estações do ano a não ser o complemento dos xailes pretos de lã ou das samarras com gola a imitar pele, somente usados em situações especiais de descanso. Numa época em que as dificuldades económicas atingiam a grande maioria das famílias, as vestimentas cumpriam cabalmente a sua missão, passando de uns para outros, mercê de uns pontos aqui, umas passagens ali e uns remendos onde o pano se rompia. Não havendo ricos, havia uma distribuição variável de pobreza nos vários aspectos de viver. Não obstante, o desejo de parecer bem, de ser mirado dos pés à cabeça, de estabelecer comparações, era uma realidade intrínseca de cada um, independentemente da idade.

Acontecia inesperadamente. Juntamente com o maço das cartas, postais e alguns jornais, na hora de, na taberna, em voz alta, ser lido o Correio, surgia um papel amarelo e fino dobrado em quatro partes a suscitar a curiosidade dos presentes, como se da roda da sorte se tratasse, na ânsia de saber quem seria o feliz contemplado. Era uma trouxa da América! Que ainda não era, mas passaria a ser depois da entrega daquele papel, nos Correios de Celorico da Beira. Rapidamente se ocultava, sem se amarfanhar muito, não fosse a troca invalidada, para se levantar o mais rápido possível. Da América distante, ficasse não interessava onde, tudo o que vinha era bom. As trouxas eram sempre oportunas: por se aproximarem datas festivas, por ter que se ir a um casamento, para mostrar brio no exame da 4ª classe, para ir à Vila ou mesmo porque os Domingos eram muitos.

Uma saca cilíndrica de tecido grosso, riscada com letras negras que não passavam de gatafunhos, se ia abrindo no meio da sala, com a porta da rua bem fechada, não só para saborear em família as surpresas amarrotadas mas também para poupar os olhares despidos dos vizinhos. Com uma sacudidela apressada e exclamações de contentamento, tudo ia ganhando forma à medida que se ia experimentando e adequando, nem sempre à primeira vez, o género e o tamanho da roupa. Tudo era lindo e ficava bem, no que concernia à cor, textura e feitio: as calças dos homens apenas precisariam de mudar o botão do cinto e subir ou descer as bainhas, os casacos largos, com mais uma camisola e as mangas dobradas, ficavam na perfeição; os casacos apertados, várias vezes vestidos e despidos, acabavam por servir a alguém, pois também não era para usar abotoados e os punhos da camisa tapavam o pulso… as roupas femininas denunciavam-se pelo volume reduzido e puxavam-se pela cor enquanto se adivinhava ser saia, vestido ou blusa…na certeza de ser possível alargar ou encolher e ficar mesmo à medida. Se acontecia uma mão-cheia de roupa transformar-se em cinto ou laço, aguardava-se até ao esvaziar do saco pela respectiva peça para contento redobrado de quem a encontrava ou desapontamento geral caso não passassem de inúteis acessórios. Nessa passagem de modelos em reboliço, em que ainda nada era de ninguém, sem acesso directo ao saco que ia perdendo a forma, íamos vestindo as peças mais pequenas na esperança de, por exaustiva redução de tamanho, também nos calhasse alguma. E calhava sempre! Uma saia de pregas desvincadas apenas a necessitar de menos altura e largura e um ferro de brasas… uma camisola que, ainda bem, tivesse encolhido, ou um vestido de menina que parecia ter sido feito para nós.

Fizeram os nossos encantos uns sapatos vermelhos, de salto alto, logo postos de lado, um atentado ao bem parecer, equilíbrio e piso da calçada. Por engano, se pensou, pois quem os enviou conhecia, da nossa aldeia, todas as realidades. Todavia, vezes sem fim neles se enfiaram os nossos pés de meninas transformadas em senhoras, nas brincadeiras de faz de conta…

Era uma alegria embrulhada em pano para ser exteriorizada no corpo e sentida na alma, enquanto de roupa de ver a Deus se tratasse. E, como os sentimentos se sustentavam de pessoas, coisas e tempo, assim este vestuário, sem identidade própria, haveria de substituir o mais usado para ser, uma vez mais, fatiota de festa de quem nunca recebia trouxas.

Longe no tempo e na distância desenrodilhamos memórias com calor de recordações e afectos numa tentativa de, com elas, nos revestirmos.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Linguagem e Comunicação - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

O aglomerado populacional desta pequena aldeia, expressava-se numa linguagem verbal simples, basicamente rural, assente na motivação e interesses comuns que, por norma, resultava numa comunicação eficiente complementada com gestos e expressões corporais. Através dela, se relatavam as cheias da ribeira, as pragas dos escaravelhos das batatas, os porcos cevados que morriam de doença, as nascentes que secavam, as geadas que queimavam as colheitas, o leite das ovelhas que tinha secado, as galinhas que deixaram de pôr, os figos a secar que tinham apanhado chuva, os míscaros que rareavam nos pinhais…as oliveiras que tinham limpado bem, a copa florida das árvores de fruto que parecia um andor, a ninhada de pitos sem ovos goros, as azeitonas que já tinham a água de Abril, o sucesso da ida da cabra ao bode, fundamentavam as conversas nos trabalhos, nas fontes, nos lavadouros da ribeira. Outros temas, mais delicados, eram abordados nas tabernas, na barbearia, à soleira das portas, nos largos ( recordamos o Largo das Linguarudas) onde se passava a pente fino a vida alheia: quem nunca se confessava, quem comungava vezes de mais, quem ia à Vila para laurear o queijo ( sem motivo), quem tinha cortado o cabelo para fazer permanente, quem tinha calotes na taberna, quem trazia os filhos sujos, quem apanhava porrada dos maridos, quem se embebedava, quem fazia azeite sem ter oliveiras, quem andava de relações cortadas, quem se vestia a parecer fidalgo, quem não aprendia na escola, quem se comprazia a falar da vida dos outros…

As novidades espalhavam-se, aumentavam de conteúdo e gravidade, formando um colectivo noticioso aprofundado à noite ao redor da fogueira ou a apanhar o fresco à porta de casa onde nós, as crianças daquele tempo, a mexer no lume ou a contar estrelas, consciente e interessadamente, ficávamos a saber quase tudo.

Papel relevante na comunicação oral, com repertório exclusivo, pertencia ao Diário Capenga. Montado na velha burra, percorrendo as feiras dos arredores, presenciava outro tipo de informações, observava e participava em transacções ousadas que, pelas ruas da aldeia, sem descer da jumenta, a pedir segredo, transmitia a quem lhe desse conversa: fulano comprou ovelhas fiadas, sicrano vendeu um porco que deixara de comer, beltrano emprestou dinheiro a…na verdade, nada disto nos despertava interesse a não ser o abanar ritmado da cauda do animal parado para sacudir as moscas enquanto esperava que o dono coxo relatasse o seu diário.

Ocasionalmente, aparecia o Manelzinho Cantador. Entrado na idade, de saco às costas e cajado na mão, cantava quadras de amores traiçoeiros e atraiçoados com finais dolorosos e trágicos. Personagem enigmática, utilizava sempre a mesma resposta independentemente das perguntas que lhe fossem feitas:
- Num copo de água chalada
- Me quiseste envenenar.
- Tu, foste para a cadeia.
- Eu, fui para o Hospital.

Dizia-se que, em jovem, o efeito de uma bebida dada por uma rapariga, lhe causara distúrbios mentais que o afectariam para toda a vida.
Sentado ao sol nas pedras de um balcão entretinha-se a dobrar e redobrar bocados de arame que tinham a finalidade de prender o fio da linha ou da lã no ombro esquerdo a substituir a pouca graça do alfinete - de - dama nos lavores femininos. A sua presença era indiferente aos homens, algumas mulheres compravam a pequena peça artesanal e andavam. Mas nós, longe de sabermos que de poeta e de louco todos temos um pouco, mantínhamos as expectativas e não arredávamos pé até que a veia poética lhe acudisse à mente e desfiasse histórias amorosas que, embora tristes, nos encantavam e comoviam por falarem de amores tão fortes, dores tão profundas, finais tão arrepiantes que, vulneráveis nas razões do coração, fazíamos o propósito de nunca amar tanto para não sofrer assim.

A tradição oral, pela boca dos mais idosos, deu-nos a conhecer factos bizarros de lobisomens, de cavalos que corriam e relinchavam pelas ruas sem poderem ser vistos, de cães brancos que irradiavam luz, de feiticeiras que, certas noites, se banhavam no rio, de bruxas, de maus olhados, de piares de corujas que anunciavam mortes, de uivar de cães que era mau presságio, de entornar azeite que trazia azar, de facas cruzadas que não era bom…tudo ouvíamos sem ousar duvidar, com acrescentes da nossa imaginação infantil. Nesse tempo e no nosso, nas noites de escuridão cerrada, tudo poderia acontecer…

Um outro tipo de linguagem, de cariz apelativo, verificava-se nos sermões das missas de Domingo cuja mensagem, por vezes, se diluía na distância cultural entre os interlocutores. Certa vez, no decorrer da Guerra Colonial, a alusão à mensagem da Senhora de Fátima aos Pastorinhos … “esta guerra vai acabar” , foi interpretada, por muitos, com regozijo, como se do fim da Guerra em curso se tratasse.

Era nas desavenças, quando a língua se desenfreava, acompanhada por gestos intuitivos, que a verdadeira comunicação se estabelecia. Os homens, mais parcos nas palavras e pródigos nos actos, com chapéus atirados ao chão e umas cuspidelas provocatórias aos socos e pontapés, às vezes com o cabo de um sacho e umas cabeças partidas, se entendiam; as mulheres alongavam as dissertações e, de mãos fincadas nos quadris, depois de “badalhocas”, “sonsas”, “que eu morra ceguinha de gota serena”, “ mil carbúnculos me nasçam”, “sua esta”, “sua aquela”, assumiam posições de corpo a corpo: os lenços da cabeça caíam, os cabelos desgrenhados ficavam à mão de semear, as blusas desabotoavam-se e saiam das saias, os aventais desatavam-se, os pés descalçavam-se …uns arranhões, umas riças de cabelo a menos e umas nódoas negras punham fim ao desentendimento.

Da comunicação escrita apenas beneficiava uma parcela desta comunidade em que a maioria das pessoas, sobretudo as mais idosas, não tinha frequentado a escola. Ser analfabeto representava, na época, uma realidade humana que, por condições concretas de existência, não necessitava de ler nem escrever. À taberna, de vez em quando, chegavam Jornais cujas notícias, de tão complexas, lidas em voz alta, entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Fragmentadas, acabavam por ser absorvidas pelo colorau, sal e canela dos cartuchos. A divulgação do Arauto da Verdade, no âmbito do Concelho e distribuído pelo Pároco, apenas dedicava um espaço muito reduzido a Vila Boa do Mondego onde constavam óbitos, partidas e chegadas de emigrantes e os donativos oferecidos à Igreja que, para evitar falatório, era frequente virem anónimos.

Nas feiras, havia quem comprasse o Almanaque que, em edição anual, além do Calendário com sinalização de Feriados e Dias Santos de Guarda, fazia vagas previsões do tempo, referia as Fases da Lua e Folhetos desdobráveis com tragédias amorosas em versos de fazer chorar. Alguém lia, alguém ouvia, tudo se esquecia. A escrita não constituía uma necessidade premente nem assumia papel relevante na materialização do pensamento, excepto quando era necessário ler ou escrever cartas. O envolvimento de outra pessoa, a quem tinha que se dar a vida a saber, não era feito de ânimo leve. Em regra, era assunto de mulheres. Se bem que a leitura das cartas não se fizesse esperar, dar-lhes resposta implicava, de ambas as partes, vários “quando tiver vagar”…
O Correio chegava à aldeia de bicicleta, numa saca grande de lona, fechada com cadeado, grande de mais para a escassa correspondência. Quem morava próximo, não perdia a leitura do Correio, em voz alta, cujos destinatários presentes se apressavam a receber. Ter uma carta era ter importância, independentemente do remetente e conteúdo!
A ti Jaquina, de idade avançada, passava horas no Largo da taberna, sentada no comprido banco de pedra, à espera do Correio. Era uma referência para se saber se o Correio já tinha chegado. Não sabia ler nem escrever, mas sabia quem recebia cartas e encarregava-se de as entregar a quem morava próximo da Capela. Levava sempre cartas ou postais acumulando nas mãos notícias mudas, quem sabe na esperança de as receber do Brasil para onde fora a sobrinha que criara de pequenina e, de tempos a tempos, lhe escrevia.

As cartas davam-se a ler em qualquer sítio. Escondidas debaixo do avental, ainda por abrir, iam ao encontro da pessoa certa, se estivesse sozinha, como se desvendar um segredo se tratasse. A compreensão do conteúdo, condicionada pela aptidão de quem lia e pela destreza de quem escrevia, fazia-se lentamente ora avançando ora regredindo permitindo, com repetições sucessivas das frases, a memorização quase integral do texto. A bem dizer, apenas a parte do meio, pois o começo e o fim já era sabido de cor:” Espero que ao fazer desta todos se encontrem bem, nós cá andamos na forma do costume”…e “ficamos à espera de resposta vossa na volta do correio, saudades, abraços e beijinhos, desta ou deste”… a verdade, é que um pedaço de papel activava imagens, factos, sentimentos, recordações; eram duas mulheres emocionadas; uma porque lera outra porque ouvira ler. Esta, limpando os olhos à ponta do avental, confundida entre alegria e tristeza, nem atinava com palavras para agradecer que, pensando bem, quem não conseguia descodificar um simples texto não poderia ter um vasto vocabulário.

Escrever uma carta tinha o seu ritual. Fazia-se sempre na mesa da sala depois de se arredar tudo o que pudesse estorvar: a jarra das flores, o açafate da costura, um chapéu, uma chave, um prato com figos secos. Mulheres e cadeiras, desajustadas pela ausência do hábito, com algum incómodo se iam arrastando para junto da mesa em sintonia com a inspiração que, raras vezes era necessária. Enquanto a que ditava a carta se ia lamentando por não saber o que dizer, já a que escrevia tinha umas linhas preenchidas para consolo da primeira. Redigiam a meias. Notícias dos familiares, dos vizinhos, um ou outro enredo curioso que, a medo, se mandava pôr e, quando chegava a altura de escrever no verso, era um alívio não tanto pelo conteúdo, mas pela extensão e o fim à vista que já não parecia mal. As cartas em pouco diferiam a não ser no endereço e remetente que, à falta de linhas, ora subiam ou desciam recaindo a culpa na mesa que baloiçava ou nas pernas tortas da cadeira.

Rebanho - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

Há imagens que se apagam
Para a outras dar lugar.
Esta, vai juntar-se àquelas
Do rebanho a pastar.


domingo, 10 de outubro de 2010

A Emigração - Anos 60 - Vila Boa do Mondego

As condições de vida, proporcionadas pela labuta constante de extrair do amanho da terra dura a subsistência precária, desde há longo tempo suscitavam o desejo de partir quer para África, Brasil ou Estados Unidos ( América, como se dizia) na quimera de abanar a árvore das patacas que não chegavam a encontrar. Para o efeito, era necessária carta de chamada que, dificilmente, se conseguia. Por intermédio de familiares ou casamentos feitos por procuração, alguns conseguiram concretizar esse sonho. De terras africanas, gozando as “graciosas”( férias acumuladas), vinham famílias que permaneciam alguns meses. Impressionavam-nos os automóveis em que chegavam, alugados em Lisboa, a variedade de roupa colorida, os rolos que as senhoras colocavam nos cabelos, para parecerem mais senhoras, os empregados domésticos de que diziam dispor, as muitas festas em que participavam… e um pó amarelo que, dissolvido em leite, com um pouco de açúcar, resultava em leite-creme. Do Brasil, poucos ou nenhuns regressavam e as notícias escasseavam nos envelopes de papel fino emoldurados com riscas verdes e amarelas. Os familiares relatavam que estavam bem mas, dada a lonjura, não diziam quando poderiam vir. Sem localização no tempo, contava-se que na estrada de Fornos, nas Ladeiras, alguém da aldeia se cruzara com um homem que, sem se identificar, fora sabedor que a mulher tinha outro marido e filhos em virtude do primeiro ter falecido no Brasil. Esta estória entristecia-nos deveras ao concluir que o homem arrepiara caminho e nunca mais ninguém o vira. Na nossa interpretação infantil, baseada apenas na sensibilidade, estávamos longe de pensar nas trágicas consequências de ser morto-vivo. Da América, até o colorido do debruado das cartas era mais alegre, vermelho e azul, a condizer com novidades favoráveis que, de vez em quando, se faziam acompanhar com uma nota de “dolas”( dollars) que surpreendiam e alegravam quem as recebia. De tempos a tempos, os “americanos” vinham de visita: distribuíam, à chegada, rebuçados pela criançada, mudavam de roupa várias vezes, iam à Vila sem ser Terça-Feira e, na missa de Domingo, depositavam uma nota na bandeja de “tirar a esmola”.


O desejo latente de partir, agudizado pela agricultura tecnicamente atrasada em que cuspir nas mãos, agarrado ao cabo da enxada, continuava a fazer calos sem diminuir as miseráveis condições de vida, num regime político que insistia na preservação da subsistência do povo e na interminável guerra colonial, despertou em corpos moídos com mentes sadias a ideia inabalável de mudar de vida para mudar a vida. Sabia-se que, em aldeias próximas, outros homens já se tinham aventurado, uns presos, outros enganados pelo” passador”, mas que alguns tinham conseguido chegar a França. Era um assunto sigiloso, soprado aos ouvidos nas feiras e mercados, delicado de mais para ser abordado nas Tabernas. Era irrelevante saber as causas dessa aceitação clandestina por parte desse e de outros países europeus. A quem interessava saber as consequências da Segunda Grande Guerra Mundial, a ocupação, a destruição, a reconstrução, a falta de mão de obra…se ali, naquela pequena aldeia, noutra guerra silenciosa se combatia que, durante gerações, ninguém conseguira vencer! Sentia-se na pele e na alma, sem constar do vocabulário activo, o duplo conceito de “interioridade”: de uma aldeia serrana e de um estado de espírito traduzido em inquietação, inconformismo, revolta, ânsia de uma vida melhor.

Estávamos no início da década de sessenta. Uma manhã, bem cedo, quatro homens na casa dos quarenta anos, conversavam junto ao Forno Grande, olhos postos na estrada que à distância se sumia nas Nogueiras. Viviam da pastorícia e da agricultura, não possuíam formação que lhes permitisse enveredar noutra profissão em qualquer parte do mundo mas, confiantes na força dos seus braços, haviam de ser, na nossa aldeia, os pioneiros dessa aventura clandestina: a Emigração. Eram pessoas respeitáveis, herdados de terras, com escolaridade que, ao tempo, os diferenciava da grande maioria. Porque os actos de coragem pressupõem sempre laivos de invulgaridade. O facto de, certamente, desconhecerem a existência do Decreto-Lei Nº 39749 de 1954, que classificava a emigração clandestina como crime, terá suavizado o sentimento de transgressão de modo a não se assumirem como criminosos. Acima de tudo, era o futuro dos seus descendentes que os norteava. Um deles tinha duas filhas na escola que, desse por onde desse, tinha que pôr a estudar, para as livrar daquela “escravatura” a que, dizia, ele próprio estava condenado. Combinaram emigrar para França, “a salto”, evidentemente. Urgia procurar um “passador”, ajustar o preço, arranjar o dinheiro, marcar a data da partida. Pela calada da noite, um misterioso desconhecido entrava na aldeia para os instruir sobre o decurso da viagem, depois de ter recebido uma parte do dinheiro. Preconizava um longo e desconhecido caminho a percorrer, possíveis perigos, maldosas denúncias, omitindo sempre a PIDE, a Guarda Fiscal, os Carabineiros espanhóis, os Gendarmes franceses e demais riscos. Noite alta, quando os xailes pretos tapavam as frestas das janelas para esconder a presença tardia da luz frouxa do candeeiro e nós já nos tínhamos recolhido, o “passador” não comparecera e não mais daria sinal de vida. Havia que reiniciar o processo, confiar sem ter confiança, não poder estar de pé atrás quando tanto iam ser precisos para andar em frente.

Partiram pela calada da noite, misturados na escuridão da tristeza, da incerteza e do medo. Levavam pouco dinheiro, a roupa do corpo, uns endereços franceses cedidos por familiares de terras vizinhas…e uma dor de fugitivo no peito. Deixavam tudo: a família, os amigos, a casa, os animais, os campos, os pinhais, uma aldeia inteira… uma vida.

Quando uma carrinha fez sinais de luzes, conforme combinado, surgiram na berma da estrada, nas proximidades da aldeia e, apressadamente, foram conduzidos por um motorista que, sem fazer perguntas, os deixou nas imediações de Vilar Formoso, ao abrigo de uns arbustos, até que alguém os fosse buscar. De imediato, outros homens se apearam de outras carrinhas e se foram agachando, em silêncio, até que, perfazendo umas dezenas, foram conduzidos para passarem a fronteira a pé, ora por carreiros, ora por matagais cerrados, antes que se fizesse dia. A atribulada travessia da Espanha, atafulhados em carrinhas sem janelas e a palmilhar caminhos já trilhados ou por trilhar, alimentados a pão, água e chocolate em barra, agravada pela chuva impiedosa que os acometeu, ia enfraquecendo o corpo, o espírito e a vontade de continuar. Como em todas as grandes decisões na vida nem sempre se pode voltar atrás, nesta situação seria arriscar mais recuar do que prosseguir. Mandaram-nos esconder num velho moinho algures num monte escabroso afastado da estrada e esperar que alguém aparecesse. Acenderam uma fogueira para secarem a roupa ao mesmo tempo que, contrariando o ditado que diz que “a união faz a força”, o desânimo colectivo se individualizava. Não havia fortes nem fracos. Apenas um grupo de homens desconhecidos, cansados, esfomeados, submissos, desorientados, abandonados.
O surgimento de um jovem rapaz, ordenando que o seguissem, acentuou fragilidade, desconfiança e outros sentimentos tão negativos que, nem quando ouvíamos os relatos, nem agora, saberíamos descrever. Porém, um ramo de árvore discretamente tombado à beira da estrada, era o código que faria parar outra carrinha para outro troço de Espanha que ia sendo percorrida com rodas e pés, quilómetros em ziguezague...
Aproximava-se a travessia dos Pirenéus para entrar em França que, segundo palpites de uns e outros, se revestia de perigos redobrados quer pelo acidentado do relevo, quer pela vigilância atenta na fronteira. Em grupo reduzido, noite dentro, sem disso se aperceberem, foram informados de que já se encontravam em território francês o que, justificadamente, lhes concedeu algum alívio. A aventura da viagem terminaria em Tours, a duzentos e quarenta quilómetros de Paris. A cidade ainda dormia quando os quatro homens de Vila Boa do Mondego foram deixados à sorte, sem eira nem beira, numa rua iluminada que os amedrontou. O escuro, por norma, gera um medo desconhecido, infundado; neste caso, a claridade era prenúncio da clandestinidade visível nos rostos sofridos e comprometidos, nos trajes descuidados, em corpos ocupando um espaço errado que, ao romper do dia, por si próprios se denunciariam. Sempre que assistíamos às repetidas descrições desta proeza constatávamos ter sido este o ponto culminante da angústia, do desespero, do terror de ser preso!
A luz que se acendeu numa janela não estava “ao fundo do túnel”. Estava próxima de uma porta que se abriu e os recolheu.

Outras dificuldades se seguiram relacionadas com a língua francesa, a cultura, a integração, a discriminação, a legalização…..as saudades… ..que, sem e com remetente, iriam afogando em cartas.

Retroceder no tempo é remexer no passado. Involuntariamente, desencadeia-se um fluxo de pensamento que conduz a uma miríade de sentimentos que deixam transparecer vivências íntimas que, das profundezas do ser, se convertem em lágrimas. Implícitos nas palavras e ideias há, nesta parcela de memórias, um amor recíproco, uma dívida de gratidão impagável de desenvolvimento pessoal, humano, espiritual e cultural e … uma saudade infinita…quando um desses homens era o nosso pai.

sábado, 9 de outubro de 2010

A Igreja - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

Berço da nossa religiosidade
Sustentação da Fé e da Verdade
Património vivo de Valores.
Em prece suplicamos ser merecedores.

sábado, 18 de setembro de 2010

A Guerra do Ultramar - Anos 60 - Vila Boa do Mondego

A vida decorria normalmente na nossa pacata aldeia no início da década de sessenta onde alguns acontecimentos locais constituíam preocupações pessoais que, por curiosidade ou solidariedade, se estendiam a todos. As notícias vindas de fora, atrasadas e deturpadas, pouca influência tinham e depressa eram esquecidas. Porém, a realidade da Guerra do Ultramar havia de interferir marcadamente na população em que jovens rapazes estavam prestes a cumprir o serviço militar. Ouvíamos dizer que, no passado, homens da nossa terra tinham andado na Guerra em países distantes. Os nossos pais contavam as suas aventuras da tropa que, por serem as primeiras fora da aldeia, não mais esqueceriam: a recruta, a continência aos Oficiais, os toques do clarim, o aparelhar dos cavalos, o render da sentinela, o campo de manobras, o rancho, a formatura na parada, o dia do juramento de bandeiras… porque, diziam com vaidade, era preciso ir à tropa para ser homem.
Porém, uma realidade bem dura havia de modificar a interpretação e aceitação dos factos: a Guerra de África. Inevitavelmente, esta expressão ensombrou o céu da aldeia. Embora houvesse quem tentasse explicar que se tratava da defesa das antigas Províncias Ultramarinas, consideradas território nacional, baseando-se ideologicamente num conceito pluricontinental e multi-racial, a verdade é que, para quem não sabia ler nem escrever, não dispunha de conhecimentos políticos, geográficos e económicos que permitissem o entendimento da Guerra Colonial em curso. Concluía-se que era obrigatório lutar em terras longínquas, para lá do mar, contra povos de raça negra que habitavam nas florestas.
Também nós nos apercebemos da gravidade da situação, pelo pulsar latente do povo. Na escola, ao estudarmos os Descobrimentos, a colonização de Angola e Moçambique, as Terras do Mapa Cor-de-Rosa, adquiríamos saberes históricos programados que, emoldurados pela imaturidade da infância, outra visão não tínhamos para além da generalizada. Tudo se agudizou aquando da afixação do Edital, na Taberna, descriminando os nomes dos primeiros rapazes mobilizados. Os familiares gritavam, a vizinhança acudia, os gritos das mães faziam partir o coração…
Seguia-se a espera de notícias, ansiosa e longa, que iam mitigando saudades sem desvanecer sobressaltos: faziam-se promessas, acendiam-se velas nos altares, alumiava-se o Santíssimo Sacramento. Porém, quando a ausência prolongada de carta ou aerograma fazia arrefecer a fé, as mães vestiam-se de escuro, cobriam a cabeça com um lenço negro e os pais deixavam de fazer a barba… Recordamos, porque presenciamos, o sofrimento de uma mãe, estendida no chão, por ter constado que o filho poderia ter morrido num ataque noticiado. Graças a Deus, todos regressaram sãos e salvos.

Apraz-nos registar, como prova de solidariedade e agradecimento, o almoço oferecido a toda a população de Vila Boa do Mondego pela família de um jovem regressado do dever cumprido. Foi um dia de festa! Havia pão, azeitonas, chouriça, grão de bico com arroz e carne de porco, castanhas cozidas e assadas e torneiras nas pipas à descrição, pois o vinho desse ano a isto estava destinado. Era uma multidão, abrigada debaixo de toldos no pátio da casa porque choveu o dia todo. Esta confraternização teve tal significado que apaziguou desavenças antigas entre familiares que, de bom grado, marcaram presença.
O entusiasmo contagiante desta refeição colectiva também surtiu em nós um certo estado de embriaguez que, ressalvando a diferenciação da bebida, se associava à alegria, às risadas de contentamento, à euforia de um povo em festa.
Tantos anos com estas lembranças a virem ao de cima! Quanto tempo a escrever, mentalmente, acontecimentos da infância!

terça-feira, 7 de setembro de 2010

As "Alminhas" - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

À entrada da povoação
Numa linguagem sem voz
As Alminhas de granito
Cremos que esperam por nós.

sábado, 7 de agosto de 2010

As Comédias - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Acontecia de tempos a tempos, ao sairmos da escola, depararmo-nos no largo da Taberna com um movimento fora do comum fosse pelas características das pessoas, fosse pela singularidade das bagagens: eram as Comédias! Assim se denominava o grupo compreendendo várias faixas etárias, trajando de forma diferente do nosso habitual, alheado da realidade campesina, autênticos desconhecidos sem intenções de estabelecer relacionamentos. Estas discrepâncias mais aumentavam a nossa curiosidade e alongavam a espera até se fazer noite. Então, sem hora previamente marcada, o Largo começava a encher-se de gente ao redor de tapetes coloridos espalhados pelo chão onde alguns candeeiros atenuavam o escuro. Havia lugar para todos, simplesmente porque não havia lugares; de pé se assistia, do princípio ao fim, pois, se de pé se tinha trabalhado o dia inteiro não fazia sentido que outra posição se tivesse para a diversão. Contudo, os mais idosos, levavam um banco de casa para melhor suportarem as dores nas cruzes (costas). Se algum burburinho se gerava, era rapidamente abafado pela voz sonora do homem que, no meio da pista, categoricamente anunciava:
-"Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos, o espectáculo vai começar"!
Mulheres, homens e garotada, enaltecidos pelo invulgar e honroso tratamento, de imediato se consciencializavam que a actuação prometia e merecia toda a atenção. Num instante, tudo se transformava: a música saía a jorros daqueles instrumentos aparatosos, dançarinas vestidas de tule pareciam borboletas, trapezistas e equilibristas exibiam números nunca vistos, contorcionistas dobravam o corpo como se não tivessem espinha ( coluna vertebral); na confusão de pernas e braços realçava-se a cabeça quando, com a boca, alcançavam uma flor que todos pensavam não ser possível… de caixas vazias saíam pombas, cartolas deitavam lenços e mais lenços que se uniam num só…cães saltavam de arco em arco! As palmas, batidas com força, aplaudiam calorosamente o melhor espectáculo que ali tinha vindo! Entretanto, entrava em cena o homem que deitava lume pela boca! Era a admiração total! A mulher encostada à tábua onde iam sendo espetadas tantas facas, fazia fechar os olhos aos menos corajosos!
Confirmavam-se as nossas suspeitas. Embora subíssemos às árvores, déssemos cambalhotas na erva e soubéssemos encontrar ninhos, jamais seriamos capazes de fazer tais habilidades!
Inesperadamente, os Saltimbancos reapareciam e, após mais algumas piruetas, aproximavam-se da assistência estendendo chapéus e boinas a fim de recolherem a recompensa do seu trabalho. As moedas iam caindo, brancas e pretas de acordo com a generosidade e posses de cada um. Nós, que já há algum tempo guardávamos na mão a moeda que nos tinha sido dada, íamos ao seu encontro como, se de algum modo, a quiséssemos transformar na nota que não podíamos dar.
Quando a excitação ia passando e as palmas iam perdendo força, surgiam os Palhaços para dar azo ( ensejo) à nossa admiração e fantasia! As cabeleiras farfalhudas ( vistosas, garridas), as caras pintadas e brilhantes onde os narizes redondos e vermelhos sobressaíam, as roupas multicores, os suspensórios, as luvas e os sapatos enormes…os nossos olhos eram pequenos para poderem abarcar tanto fascínio! Era irrelevante o que dissessem ou fizessem, bastava acompanhá-los com o olhar porque tudo neles tinha uma graça imanente que superava a nossa imaginação e nos transportava, sem nos darmos conta, ao mundo efémero do deslumbramento!

domingo, 1 de agosto de 2010

                                         Digna de contemplar
                                         Esta paisagem serrana.
                                        Nos cabeços, os penedos.
                                        No vale, a Ponte Romana.


segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Louceiro - Vendedor de louça de barro - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Gostávamos de o ver chegar, com o burro carregado de objectos de barro embrulhados em palha. Escolhia um recanto da rua e espalhava pelo chão o que tinha para vender ou trocar: cântaros, potes, bacias, tigelas, alguidares, pratos, púcaros, bilhas, jarras, caçoilas de ir ao forno, canecas, assadeiras, fogareiros… os mais variados objectos que em barro grosseiro se possam conceber. Havia também, em menor número, algumas peças vidradas ( cobertas por uma substância vitrificável) que, por serem mais caras, nem valia a pena perguntar o preço. Entretanto, algum amigo o convidava para visitar a adega e, conversa puxa conversa, se falava da queima da geada, do limpar das oliveiras, de acontecimentos em povoações vizinhas. As mulheres, desejosas de substituir a loiça esborcelada ( com bordas partidas), mexiam, pegavam, viravam, num contacto agradável e pouco comum de manusear objectos domésticos que nunca foram utilizados,…e poisavam-nos à medida que iam fazendo contas à vida. Pensando bem, podiam-se remediar até à Feira da Santa Eufêmia onde, pela quantidade da oferta, tudo havia de ser mais barato. Viravam costas sem, muitas vezes, dar ouvidos ao chamamento do louceiro que, precisando de vender, se conformava a não ganhar nada, como ele dizia. Verificando que, desta forma, não fazia negócio, tinha como alternativa, trocar louça por géneros: ao aceitar batatas, feijão, milho ou melancias, ia entregando louça, a mais que não fosse para aliviar a carga do animal. Passados dois ou três dias, sem perspectivas de melhores transacções, decidia-se a arrumar a louça e a percorrer outras aldeias numa vida ambulante em que a sorte seria igual.
Nós, que ainda nem tínhamos dez anos de idade e apenas compreendíamos a objectividade das coisas, ficávamos a pensar que a vida seria assim: uns chegavam e partiam, outros ficavam para sempre…como nós, à espera da próxima vinda do louceiro.

sábado, 17 de julho de 2010

Vila Boa do Mondego - Casas - Foto Actual

    Imagens que falam por si
  Isentas de contestação.
   Atestam modos de vida
         Dos tempos que já lá vão...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Amola - Tesouras - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Neste retorno ao passado, que o acto de escrever aviva mais, tornam-se presentes as vivências mais simples há muito adormecidas. Descrevê-las minuciosamente, de forma despretensiosa, permite galgar tempo e distância, voltar a ser criança e saborear o viver dos primeiros anos da nossa vida. Poder-se-á questionar a importância dos temas ou a pertinência dos factos, mas não os traços marcantes que ainda permanecem.
O Amola – Tesouras aparecia inesperadamente. A mesma indumentária coçada ( muito usada), larga e escura, o mesmo boné, os mesmos serviços.
Fazia-se anunciar pela gaita de beiços, num tom crescente e decrescente seguido do cantado pregão "amola tesouras e navalhas" que toda a gente identificava. Não tinha poiso certo; percorria as ruas deslocando a velha bicicleta onde estava montada a pedra de esmoril, que o pedal fazia rodar, bem como a caixa que armazenava o mais diversificado material: martelos, tesouras, alicates de pontas diferentes, arames, pregos, guarda - chuvas partidos, pedaços de panos velhos… e ia parando às portas de quem do seu ofício necessitava. Afiava tesouras, facas, navalhas, consertava guarda – chuvas substituindo varetas empenadas, colocando remendos ou um cabo novo.
Depressa dava a volta ao povo. Encostava a bicicleta, entrava na Taberna, mandava vir meio quartilho de vinho acabando por ali deixar os míseros tostões conseguidos. Quando o víamos partir, na direcção do Eirô, ouvíamos dizer aos mais entendidos que não tardaria a chover…

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Caldeireiro - Artesão / Conserteiro - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Aparecia na aldeia, de tempos a tempos, permanecendo alguns dias. Dirigia-se ao largo da Taberna do Sr. Pereira e aí assentava arraial, convicto de que podia pernoitar no pátio anexo. Descarregava do burro as ferramentas necessárias e, munindo-se de uma sertã ( frigideira larga, de pouco fundo) presa a um martelo, dava a volta à aldeia produzindo o som dos dois instrumento agitados com uma só mão. Em seguida, ia fazendo tempo na Taberna bebendo uns copos e contando novidades. Calmamente, junto do comprido banco de pedra, retirava dos sacos as parcas ferramentas inerentes ao seu trabalho a que nós, de pé, assistíamos. Aos poucos, começavam a aparecer alguns utensílios domésticos para remendar: cântaros, regadores, panelas e tachos, baldes, almotolias, candeeiros…que, com o uso, se tinham furado. Não arredávamos pé dali, ansiosos por vê-lo iniciar o trabalho. As brasas acesas na lata velha e negra iriam aquecer o ferro de soldar que, fazendo derreter a solda, pingo a pingo ia tapando todos os buracos. Por vezes, aparecia quem trouxesse um prato, uma travessa ou terrina em dois ou três bocados; o desgosto manifestado quer pela antiguidade quer pela utilidade, levavam o artesão a colocar “gatos” ( espécie de ganchos metálicos) nas rachas para reunir as partes quebradas. As peças de cerâmica ficavam como novas, prontas para durar outro tanto tempo.
Embora não tivesse muita apetência para conversar, nós fazíamos-lhe companhia observando cada movimento e por ali ficávamos até que o nosso nome se fazia ouvir, sinal de que devíamos regressar a casa. Para apaziguar os ânimos, contávamos quem tinha dado serviço, como este tinha sido realizado, como parecia impossível ter remendado tantos furos neste ou naquele regador, como as brasas se aguentavam tanto tempo…enfim, repetíamos o que era por demais sabido cada vez que o Caldeireiro, a troco de uns escassos escudos, saídos do nó da ponta do lenço das mãos, prolongava o uso das vasilhas já gastas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Estrada Nacional Nº 16 - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

                                                  Sem grandes alterações
                                                  Na paisagem envolvente
                                                  Se vivem recordações
                                                  Do tempo de antigamente.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Cantoneiro - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

A evocação deliberada destas memórias centra-se, essencialmente, sobre pessoas cujos nomes tão bem retemos. De umas nos recordamos claramente localizando-as nas ruas, de enxada às costas ou de cesta à cabeça, a descansar nas soleiras das portas, a remendar peças de vestuário, a jogar as cartas na Taberna; outras, porém, por coincidirem com o início da nossa meninice, apresentam-se difusas e restritas a um ou outro lugar. Neste caso se inclui um Cantoneiro ( empregado de conservação e limpeza de um cantão, de estrada). Avançado na idade, há muito tempo deixara de trabalhar passando os dias ensoleirados sentado numa cadeira, junto à casa, a ver-nos brincar no caminho do Cruzeiro ou na cova do barro com os três filhos que, tardiamente, tivera. Sabíamos que tinha sido Cantoneiro e, sem discernirmos no que consistia esta profissão, prevalecia a ideia que era não trabalhar no campo a tempo inteiro. Mais tarde, porque outro Cantoneiro existiu e o nosso entendimento se aperfeiçoou, constatámos ser uma ocupação diferente, com horário estabelecido, remuneração certa, farda própria acinzentada e chapéu de abas largas, usufruindo de privilégios que a generalidade dos residentes não possuía.


Esta actividade, exercida na Estrada Nacional  nº 16, mais propriamente no troço entre Celorico da Beira e Fornos de Algodres, consistia em reparar covas, limpar valetas e aquedutos, sachar e ancinhar as bermas, demover árvores tombadas, plantar outras, cortar e desbastar as clúvias que efusivamente alastravam, pintar os marcos de sinalização, evitar incêndios, ajardinar os locais providos de fontes, facilitando a deslocação dos transportes rodoviários e amenizando a circulação dos transeuntes para Feiras e Mercados. Arrumada a um canto do subconsciente ainda permanece a imagem da máquina preta com a fornalha ardente a expelir fumo fazendo derreter o alcatrão que, derramado sobre o entulho que preenchia os buracos, uniformizava o tapete da via. Era bem mais aprazível caminhar ou passear ladeando a estrada do que calcorrear carreiros esburacados, rompendo entre silvados, para chegar à Tapada do Senhor, ao Martinel ou às Enguias!

As circunstâncias do trabalho conferiam ao Cantoneiro formas específicas de socialização e aquisição de conhecimentos: contactava com gente de outras paragens, dava informações, inspirava segurança… desenvolvendo uma concepção do mundo rolando sobre rodas accionadas por motores que, consequentemente, haveria de diferir da obtida através da locomoção quadrúpede e rodas de madeira que, no viver da aldeia, se fazia.

Além do mais, na análise reflectida implícita na descrição destas memórias, valoriza-se a localização geográfica da nossa terra beneficiando da Estrada Nacional como abertura de novos horizontes de tal modo que, cortando à direita ou à esquerda, se tomaram rumos percorrendo quilómetros, atravessando fronteiras e sobrevoando Oceanos.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O Barbeiro - Anos 50/60- Vila Boa do Mondego

A barbearia que mais propriamente correspondia aos parâmetros da época, situava-se no largo do Soalheiro. Era um espaço pequeno onde a cadeira de barbeiro rotativa sobressaía entre os bancos corridos encostados às duas paredes laterais. Frente à porta, um espelho grande reflectia os rostos masculinos marcando a nítida diferença do antes e do depois. Na verdade, a grande maioria dos homens, preocupados com o trabalho da lavoura despreocupavam-se com o crescer da barba durante a semana e, só ao Sábado depois do sol posto, entravam na barbearia. O que valia era a espuma espessa de sabão, abundantemente espalhada na cara, com um pincel, e a navalha permanentemente afiada, para desfazer a barba de oito dias que, em movimentos regulares, era depositada no limpa – navalhas que, de vez em quando, era descarregado em folhas de jornais. Por vezes, a perícia do barbeiro não conseguia evitar pequenos cortes que, desinfectados com álcool, mal se notavam no dia seguinte. A pequena sala enchia-se. O trabalho ia-se acumulando sempre que um ou outro freguês também cortava o cabelo. A espera também fazia parte e as conversas constituíam uma fonte de informação das ocorrências locais e arredores, não sendo relevante a falta de actualização. O barbeiro parecia que sabia tudo: sabia ouvir e comunicar, corrigir a informação e deixar os outros falar. O seu desempenho e presença, tornavam-se, por isso, imprescindíveis. Durante a semana, em dias certos, deslocava-se às Quintas dos lavradores para exercer as suas funções levando na caixa de madeira os apetrechos necessários.


Possivelmente, também as pontas dos nossos cabelos caíram no chão desta barbearia, pois era preciso cortá-las amiúde para ficarem mais fortes. Mais fortes foram também as aspirações do barbeiro que fechou a porta e partiu para o Brasil.

Outra barbearia abriu, numa sala improvisada por baixo do Salão, no Santo António, onde pai e filho exerceram a mesma profissão. O pai, mais vocacionado para as lides agrícolas, sendo reconhecido como enxertador experiente, de pouco tempo dispunha. O filho, apostando noutras capacidades latentes, cedo reconheceu que os cortes das barbas e dos cabelos, se bem que rejuvenescessem fisionomias, não eram suficientes para governar a vida e emigrou para França. Com ele se passou este episódio curioso que, ao tempo, ouvimos contar:

Entrando, certo dia, na Taberna segurando na mão a maleta de barbeiro, após ter visitado um freguês numa Quinta, alguém de modo zombeteiro lhe perguntara:
- A como vendes a grama? ( Insinuando a comparação com os ourives ambulantes).
- Prontamente, o jovem barbeiro lhe respondeu:
- A quanto você gramar!

Provavelmente, este nosso amigo já não se recorda desta ocorrência e muito menos da pessoa que o interpelou. Com receio de ferir susceptibilidades evitamos referir nomes, conscientes do valor acrescido que estas memórias poderiam ter. Porque os nomes das pessoas dão vida às narrações, atestam a veracidade dos factos e estabelecem maior cumplicidade no viver que partilhámos.

domingo, 30 de maio de 2010

Trabalho Artesanal - O sapateiro - Anos 50 / 60 - Vila Boa do Mondego

Ao escrever sobre memórias de infância, quando mais de meio século delas nos separam, acodem ao pensamento múltiplas evocações nem sempre fáceis de ordenar e transmitir. Esta transposição ao estado de criança, mergulhando no vasto domínio do subconsciente, faz emergir pessoas, os seus nomes, as suas casas, os seus trabalhos, a envolvência do viver quotidiano desta pequena aldeia serrana.

Do primeiro sapateiro dos nossos tempos, pouco nos recordamos: apenas do local onde trabalhava, numa loja ao fundo do pátio a que se acedia descendo dois ou três degraus; a mesa de trabalho e muitos pares de sapatos…este sapateiro, disso nos lembramos, tinha filhas jovens e mimosas que, para livrar da vida campesina, rumou com elas para a América. Mais tarde, outro sapateiro instalou a banca perto da escola, em frente à amoreira e nesta oficina, por observação, adquirimos os primeiros conhecimentos da arte de consertar calçado. Por norma, eram as crianças que o levavam e deixavam o recado do que era para fazer: pôr meias solas, pregar protectores ou tachas ( pequenos pregos de cabeça chata), tacões, alargar, coser, colar ou simplesmente engraixar ou substituir atacadores. Sentado na cadeirita de palha, junto à mesa baixa, pano escuro sobre os joelhos, de frente para a porta, ia utilizando os diversos utensílios de acordo com a necessidade do calçado que tinha em mãos: despertava a nossa atenção o passar da linha pela sovela e o afiar da faca numa tábua revestida de lixa, a quantidade de frascos e escovas, o pé de ferro que era pesado e, sobretudo, a enorme quantidade de sapatos, botas, chinelas, tamancos ou tarocas que, de forma ordenada, se estendiam nas prateleiras ou no chão de terra batida. Às vezes, enquanto esperávamos, tentávamos adivinhar a quem pertencia: quase sempre acertávamos pois o que ali se encontrava era utilizado para “ver a Deus”, ou seja, para usar ao Domingo e ir à vila e era sempre o mesmo anos a fio. O que deveras nos deixava intrigados não era a rapidez com que puxava o lustro, mas a saliva que, sobre o calçado, sem interromper a manobra, saía automaticamente em sucessivas cuspidelas.

Também este sapateiro emigrou para França; não porque os consertos acabassem, mas porque achou por bem arranjar outra forma de consertar a vida.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Vila Boa do Mondego - Casas - Foto Actual

                                         Vislumbra-se lá no alto
                                         mesmo ao cimo da Eira
                                         uma parede da casa
                                         onde viveu a Parteira.

A Parteira - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

No recôndito lembrar destas memórias e porque o pensar feminino tem imposições específicas, não podemos deixar de referir a missão nobre e ímpar da parteira de ajudar as mulheres da aldeia a dar à luz. Desde o princípio da gravidez que nela pensavam quando chegasse a hora, certas da sua disponibilidade e competência. Ajudou a nascer a quase totalidade da nossa geração, numa época desprovida de cuidados médicos e higiénicos em que a habilidade, a muita prática e coragem, diplomaram em nascimentos aquela a quem, popular e carinhosamente, chamávamos de Tia Virgínia. Morava no cimo do povo, no Outeiro, numa casinha modesta e a sua imagem, de velhinha, ainda guardamos com gratidão. Quando solicitados os seus serviços, sempre que a mulher grávida sentia os “primeiros puxos”( as primeiras contracções), ainda que fosse a altas horas da noite, saltava da cama, ia-se abotoando pelo caminho e corria para a mulher com dores de parto, mesmo que fosse fora da aldeia. Uma panela com água quente, uma bacia de esmalte ou de zinco, uns panos brancos e limpos, uma tesoura e um carro de linhas, constituíam os acessórios de que não precisava de se fazer acompanhar. Tudo se fazia de acordo com a sua determinação: fazer força no momento certo, agarrar-se à barra da cama ou a ela própria, abrir a boca e respirar bem, mudar de posição, acelerar a dilatação com vapor de água quente se “a boca do corpo não se abria”…ter paciência que já faltava pouco…e as suas mãos abençoadas acolhiam os seres pequeninos que, chorando, muitas vezes vinham ao mundo magrinhos e engelhados, mas que ela garantia não ter importância pois “traziam pele para encher”.

Entretanto, já outra mulher, familiar ou vizinha, preparava uma galinha gorda para fazer a canja que iria fortalecer a parturiente durante o período de resguardo. A parteira ia à sua vida sem outra recompensa a não ser a suprema satisfação de ter conseguido levar a cabo tão sublime incumbência.

Com palavras se expressam pensamentos. Estes, por se referirem ao começo da nossa existência, envolvemo-los em fraldas de amor, carinho e agradecimento às duas primeiras mulheres das nossas vidas: a nossa saudosa mãe e a Tia Virgínia.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Casas - Foto Actual - Vila Boa do Mondego


                                                             A figueira permanece.
                                        A testemunhar os factos que a memória não esquece...

domingo, 9 de maio de 2010

Trabalho Artesanal - O Tear - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Tratava-se de uma tecelagem manual que, graças ao trabalho paciente e habilidoso da Senhora Dolores, cobria de mantas de farrapos a aldeia inteira, sem contar as que iam sendo guardadas nas arcas para integrar o enxoval das moças casadoiras. Com frequência entrávamos na casa do tear, atraídos pelo ranger das peças e pela bondade da tecedeira que sempre nos presenteava com qualquer coisa do nosso agrado: figos secos, amendoins, bolachas, um quarto de trigo… fazia-nos confusão aquele aparelho de madeira, com pedais e fios por toda a parte; primeiramente, olhávamos a ver se compreendíamos e, para justificar a nossa presença, íamos ouvindo as explicações que, por serem repetidas, acabamos por decorar: a “urdidura” era o conjunto de fios tensos colocados verticalmente que definia o tamanho da peça; a “trama” era o segundo conjunto ( constituído por tiras de farrapos cortados e enrolados) que, com o auxílio de uma navete ( espécie de agulha de madeira) passava entre os fios da urdidura através de uma abertura chamada “cala”; esta, resultante da acção de uma peça denominada “pente”, permitia levantar e baixar alternadamente os fios da urdidura para a passagem da trama. Deste sucessivo e ordenado entrelaçamento dos dois conjuntos de fios, resultavam mantas e passadeiras coloridas que enfeitavam os quartos e as salas das casas da nossa aldeia. Nunca nos passou pela cabeça que alguma vez conseguíssemos exercitar esta arte mas, nos serões de Inverno, ajudávamos a rasgar em tiras as peças de roupa velha que, depois de cosidas umas às outras, se enrolavam em novelos e metiam em sacos para irem para o tear. Ali ficavam à espera de vez, sem compromisso certo de entrega. O mais importante era que as mantas ficassem bonitas, mesmo que os trapos fossem desmaiados. Para isso, contava-se com a artimanha da tecedeira que, quase sempre, trocava novelos esbranquiçados por garridos para, de onde em onde, tecer pedaços de arco-íris…

No pequeno pátio anexo, resguardado por um muro, existia uma figueira de figos pretos, como não havia outros na povoação, que atraíam o olhar de quem passava e nos desafiavam a nós…À cautela, a tecedeira escondia-os nas folhas largas que prendia com carumas. Como sabíamos isso, mais tempo nos demorávamos a olhar para descobrirmos onde estavam os figos que, solicitados com jeito, a faziam largar o tear para vir colher os que nós quiséssemos.

Escreve-se pouco, mas pensa-se muito.
Recuando no tempo, relembramos imagens, sons e cheiros, sentimentos e emoções e outras sensações que continuam indescritíveis como a de sentir o aconchego das mantas de farrapos, que quase nos tapavam a cabeça, nas noites geladas de Inverno.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Casas - Foto actual - Vila Boa do Mondego




Aqui se destinava o rumo:Santo António ou Soalheiro.
Na certeza de chegar, directamente, ao Outeiro.
Quis o acaso, que sorte!
Que nesta bifurcação
Aparecesse o moleiro
Dos tempos que já lá vão...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Trabalho Artesanal - A Moagem dos Cereais - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

O pão constituía parte fundamental na alimentação e era necessário providenciar para que nunca faltasse. Havia a sorte de existir uma azenha na margem esquerda do rio Mondego, bem pertinho da aldeia. O açude encaminhava a água para o moinho que fazia mover os rodízios de madeira que accionavam a mó ( pedra granítica redonda muito pesada) transformando o cereal em farinha. O moinho nunca parava. Para tal, exigia o trabalho do moleiro, todo empoeirado do pó da farinha, na recolha dos alqueires ( medida de capacidade correspondente a treze litros) do grão, de porta em porta, carregando no seu burro os sacos de centeio e de milho depois de terem sido crivados e cirandados para retirar alguma pedra, pau ou cisco. Lembramo-nos dele, o Pedro moleiro, a percorrer as ruas da aldeia, sem pressas e bem disposto mesmo que alguma freguesa se tivesse atrasado a encher o saco. No dia seguinte, nova volta, desta vez para entregar as taleigas que, destinadas à farinha, eram brancas e macias. O seu trabalho não era pago em dinheiro; ele próprio descontava a maquia que, em alguns casos, deixava as mulheres descontentes e a refilar.

Da farinha de centeio, depois de peneirada, extraía-se o farelo para engrossar a vianda dos porcos. Com a farinha de milho, em menor quantidade, preparavam-se as papas que se comiam ao pequeno almoço em vez das batatas; aquecia-se a água, dissolvia-se e mexia-se a farinha, adicionava-se um pouco de açúcar, deixava - se ferver e comiam-se antes de arrefecerem. Para nós, a pequenada, eram um castigo aquelas papas logo ao levantar da cama! Franzíamos sempre o nariz! Então, para evitar complicações e não chegarmos tarde à escola, espalhavam sobre o nosso prato umas colheradas de açúcar amarelo que, ao derreter-se, fazia carreirinhos doces que se desfaziam em toda a superfície.

Às vezes, quando íamos ao rio, espreitávamos para dentro do moinho, mas apenas registamos a ideia de um lençol branco envolvendo tudo. Como, naquela idade, só o que era visível e real prendia a nossa atenção, molhávamos os pés, brincávamos na areia e apanhávamos pedrinhas redondas que levávamos nos bolsos. Era deveras interessante quando os filhos do moleiro se juntavam a nós e, em mergulhos rápidos, apanhavam peixes nos buracos das rochas e emergiam da água funda com um peixe na boca e um em cada mão!

A nossa infância foi uma acumulação de saberes vividos que, mesmo sem utilização prática no decorrer da vida, sustentaram outros saberes e enriqueceram a nossa personalidade.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Trabalho Artesanal - O fabrico do Queijo - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

À noitinha, enquanto se fazia a ceia, o pastor entrava na corte das ovelhas para fazer a ordenha. Os rebanhos não eram numerosos, mas sempre levava tempo. De cócoras, junto de cada animal, mãos hábeis iam fazendo esguichar o leite na ferrada ( vasilha para a qual se munge o leite) ao mesmo tempo que um monólogo se ia repetindo no sentido de manter o animal quieto. A luz frouxa do candeeiro de petróleo, pendurado num pau espetado num buraco da parede, era suficiente para quem, quase de olhos fechados, executava este trabalho. O leite da noite juntava-se ao da manhã, pelo que a ferrada ficava suspensa no sítio do candeeiro. Ao romper do dia, seguia-se o mesmo ritual, antes do rebanho sair para a pastagem. Na cozinha, já há muito o lume se mantinha aceso nas frias manhãs de Inverno, junto do qual se fazia o queijo. No asado, ( espécie de panela alta com asas), já estava estendido o coador, devidamente atado nas asas, com o cardo moído à espera que o leite ali fosse despejado. Depois de mexido ficava algum tempo ao redor da fogueira até coalhar. Entretanto, a pequena mesa cujo lugar era encostada à parede, tinha sido arrastada de modo a beneficiar directamente o calor das chamas e, sobre ela, fora colocada a francela e o acincho. Sentada num banco, à altura da mesa, de mangas arregaçadas, sem outro trabalho em mente a não ser este, a mulher ia retirando a coalhada com a escumadeira e, pouco a pouco, depositava-a na francela à medida que a ia espremendo. Era um trabalho moroso e delicado em que até a temperatura das mãos influenciava a qualidade do queijo. Com a ajuda do acincho e de um pano branco, o soro acabava por sair completamente deslizando para o caldeiro para, mais tarde, depois de fervido, se comer ou fazer requeijão. À massa resultante, compacta e esbranquiçada, era dada a forma do queijo que, depois de esfregado com sal e protegido com uma ligadura, se colocava nas prateleiras a esse fim destinadas para ficar a curar durante cerca de um mês. Durante a cura, requeria viragens hábeis, lavagens sucessivas, mudança diária dos panos brancos que, alternadamente, eram lavados e corados para evitar o cheiro intenso.

Quando o queijo curado perfazia uma arroba ( quinze quilos), levava-se à feira de Celorico ou de Fornos tentando-se o melhor preço para acudir às despesas. Porém, nem toda a produção seguia para o mercado. Uma parte servia de pagamento aos donos dos lameiros pelas pastagens que durante o Inverno alimentaram os rebanhos e era pela Páscoa que a dívida se liquidava.

As nossas mãos pequeninas não tiveram permissão de colaborar num trabalho que exigia tanta mestria. Ficávamos a ver, a pôr lenha no lume, a fazer perguntas, à espera que fervessem o soro e, numa malga, misturarmos pedaços de pão centeio e umas colheres de açúcar.

O requeijão era fácil de fazer: com a escumadeira, deitava-se a coalhada nos açafates de verga, calcava-se com uma colher e deixava-se ficar de um dia para o outro. Habitualmente, não se fazia. Apenas quando se queria presentear alguém ou levar para Celorico à Terça-Feira, coberto com folhas de couve, para vender às senhoras que muito o apreciavam.

As cozinhas das queijeiras ( fabricantes de queijo), dadas as precárias condições higiénicas da época, mantinham um cheiro característico indisfarçável que se impregnava nas roupas das mulheres e denunciava a sua arte de fazer queijo.

Depressa chegava o queijo das maias; os pastos, mais que rapados, já não sustentavam o gado. Este, que todo o dia procurava comida, era forçado a comer as flores das giestas que, em Maio, proliferavam por toda a parte. Mas, o leite ia diminuindo e enfraquecendo, os queijos mais pequenos e de inferior qualidade deixavam de ter venda. Com eles se pagavam favores; outros guardavam-se para ocasiões que justificassem que fossem encetados; barravam-se com azeite e colorau para aguentarem mais tempo sem apanhar bolor. Na maioria das vezes, apanhavam um sabor picante e endureciam de tal maneira que, ao partir, as fatias se esmigalhavam e, a custo, se mantinham sobre a fatia de pão. Mas era queijo! Era assim que sempre se comia!

Naquela idade, quando comíamos daquele queijo, não nos passava pela cabeça que era o verdadeiro queijo da Serra nem que, tantos anos depois, viria a ser reconhecido com superior qualidade. Era o queijo da nossa terra, feito do leite das ovelhas que todos os dias víamos comer a erva verde dos lameiros.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A estrutura que sustentava a latada ruíu; algumas pedras  entortaram; mas ainda se mantêm estas velhas cepas que a força da natureza faz manter vivas. Bem diferente da imagem da nossa infância, faz-nos pensar no poder implacável do tempo...

Trabalhos Rurais - O tratamento da vinha - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Tratar uma vinha, nos anos a que nos reportamos, requeria um cuidado manual intensivo que, a bem dizer, se prolongava por todo o ano. Em Janeiro procedia-se à poda que consistia em cortar as vides que, depois de secas, eram excelentes para acender e atiçar o lume; a escava em Fevereiro e a cava em Março tinham como objectivo evitar a proliferação das ervas daninhas e aconchegar a terra ao tronco das videiras. Se, de velhice ou doença, alguma cepa secava, havia que substituí-la pelo bacelo ( vara de videira com que se reproduz a vinha) que, passado algum tempo, se enxertava cobrindo-se com terra para germinar. Por altura do S. João, quando começava a floração, tinha que se enxofrar e espalhar a calda ( mistura de água, cal em pedra e sulfato de cobre) , de quinze em quinze dias ou de oito em oito, conforme o tempo que fizesse, para acudir ao míldio, ao oídio, à podridão cinzenta…De máquina de sulfatar às costas…a mão esquerda a accionar uma gancheta para produzir pressão e a direita a segurar um tubo em que uma pequena torneira regulava a saída da calda, se percorria a vinha, videira por videira, ramo por ramo, folha por folha. Durante alguns dias, o verde tornava-se azulado
mas, se por azar, caía uma chuvada erra uma arrelia, mais uma despesa e outra carga de trabalhos! A abundância de ramagem impedia a penetração do sol sobre os cachos, daí a necessidade de se esfolhar para que todos ficassem expostos à luz solar.
A VINDIMA
Sabíamos do ditado popular “no dia de S. Lourenço vai à vinha e enche o lenço”mas, sabíamos também que as uvas eram amargosas e, até amadurarem, ainda levava tempo. Quando as abelhas e a passarada andavam à volta dos cachos e as lagartixas ficavam quietas sob as videiras, era sinal que os bagos estavam doces e, por conseguinte, maduros. Chegava Setembro. Combinava-se o dia da vindima e as pessoas mais chegadas ofereciam-se para ajudar. As mulheres, de cesta e faca, começavam numa ponta levando a eito as cepas velhas e tortas; os homens iam despejando as cestas nos canastros para serem transportados para o lagar à medida que estivessem cheios. As latadas, que normalmente cobriam os engenhos, eram vindimadas pelos homens que se encavalitavam nas pedras das guardas dos poços e, um a um, iam depositando os cachos nas mãos femininas. O acto de subir, neste e noutros casos, não se ajustava às saias rodadas das mulheres… Dias antes, já tinham sido colhidos os cachos de melhor qualidade, de uvas brancas com tonalidade amarelada de tão doces serem; destinavam-se a ser pendurados num cordel, esticado sobre a tulha das batatas, para se conservarem e comer mais tarde. Era um trabalho suave, agradável que se praticava com alegria enquanto se ia depenicando um e outro bago. A meio da tarde, as uvas estavam no lagar e o cheiro das sardinhas fritas aumentava o apetite enquanto se improvisava uma mesa com os canastros voltados ao contrário e umas tábuas a servir de assento. Encostadas à parede, no interior do pátio, as pipas e a dorna ( vasilha de aduelas, sem tampa, para pisar as uvas brancas), continuavam a embuchar. Uns dias antes, tinham sido cuidadosamente lavadas, o sarro ( restos solidificados do vinho anterior) raspado, os arcos de ferro ajustados.
Fazia-se noite quando os homens se descalçavam e arregaçavam as calças para entrarem no lagar e iniciar a pisa das uvas. Algumas vezes, por muito insistirmos, deixavam-nos entrar e, com ajuda de fora e de dentro, transpúnhamos a parede alta mergulhando os pés no líquido escuro esmagando bagos para a frente e para trás como os homens faziam. Porém, depressa davam o desejo por satisfeito e, mais uma vez, tínhamos que entender que a nossa colaboração apenas empatava o trabalho. Na verdade, o lampião na parede de granito do lagar, significava o avanço da hora, a subida do nível do sumo, grainhas e engaço, e também que era inevitável que os homens tirassem as calças e ficassem em ceroulas a que nós, evidentemente, não podíamos assistir. Naquela altura ainda não sabíamos que “até ao lavar dos cestos é vindima”; por isso, íamo-nos embora, contrariados, porque gostávamos de estar ali. No dia seguinte, antes que o mosto fermentasse, retiravam-se alguns litros, juntava-se aguardente e deitava-se num barril pequeno de castanho, de preferência, e fazia-se a jeropiga que, dizia-se, era a bebida das mulheres.

Alguns dias depois retirava-se a rolha de cortiça do buraco do lagar e transportava-se o vinho para as pipas que, entretanto, já tinham sido colocadas no lugar apoiadas nos velhos madeiros; com o auxílio de um grande funil, para que nem uma gota se entornasse, cântaro a cântaro se iam enchendo, havendo o cuidado de deixar o orifício destapado porque o vinho ainda continuava a ferver durante algum tempo. Era uma inquietação quando as pipas pingavam, sinal de que não tinham embuchado convenientemente. Era uma canseira e uma preocupação que apenas o sebo poderia resolver. Nestas circunstâncias, a vigilância era redobrada para esfregar mais sebo e despejar o alguidar que, de tempos a tempos, ia ficando cheio. E ninguém se deitava descansado sem antes pegar no lampião e ir dar uma vista de olhos, passar o dedo pelas camadas de sebo para ter a certeza de que, naquele momento, nada remanescia.

Os afazeres inerentes a esta tarefa ainda não tinham terminado. Quando o canganho (engaço), amontoado a um canto do lagar, exalava o seu cheiro característico e os mosquitos nele se amontoavam, já o alambique estava preparado, a pia ao lado cheia de água, as cavacas amontoadas ali ao canto e o pátio bem varrido para se proceder à feitura da aguardente. Fazê-la boa, tinha ciência, como ouvíamos dizer. No fundo da grande caldeira de cobre colocavam-se pauzinhos de vide para o engaço não se esturrar; o lume tinha que ser moderado e, sobretudo, haver paciência e esperar que o precioso líquido escorresse pela palha e caísse na jarra de vidro para se testar a cor. O pequeno copo de vidro, destinado a provar e definir as características da aguardente, enchia-se e esvaziava-se, de uma só vez, sempre que um amigo, ao passar na rua, era convidado para dar a sua opinião. As mulheres pouco tempo permaneciam neste local; a sua apreciação da bebida não era tida em conta e, mesmo aquelas que, por brincadeira ou não, despejavam o copo, faziam tantas caretas que nem dava para perceber até que ponto lhes sabia bem…

Quem produzia aguardente, tinha-a para o ano inteiro. Não só para beber de vez em quando nas manhãs mais frias, como para presentear um amigo, para utilizar nos bolos em ocasiões festivas, para esfregar as costas, as pernas ou os braços, desinfectar feridas e também para bochechar quando apertava a dor de dentes. Ouvíamos dizer aos mais idosos que as mulheres, nos primeiros meses de gravidez, deviam tomar em jejum uma pequena porção para matar o “bicho”.
Também as ginjas garrafais, metidas em aguardente, acabavam por adquirir uma cor acastanhada. Desafiavam a nossa curiosidade e prendiam os nossos olhares…

Há um ditado popular que diz: “trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco”. Os nossos pais, cientes do seu valor, punham-no em prática aproveitando as nossas forças e habilidades de criança que, associando aos afazeres uma componente lúdica, interiorizávamos conhecimentos e aprendizagens que haviam de perdurar a vida inteira.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Trabalhos Rurais - A Ceifa e a Malha do Centeio - Anos 50/60 Vila Boa do Mondego

Os terrenos áridos das encostas, com pedregulhos amontoados de onde em onde, apenas permitiam a cultura do centeio baseando-se, unicamente, na sementeira e na ceifa. Na primeira, dois homens bastavam: o lavrador, com a junta de bois e o arado, e o semeador com um saco ao ombro para espalhar as sementes. Havendo a sorte de não se partir nenhuma relha, devido às pedras que abundavam, num dia ou dois fazia-se o trabalho tendo em conta que não havia áreas muito extensas. E tirava-se dali o sentido e tudo ficava ao sabor do tempo, desde o crescimento à formação da seara, com sucessivas tonalidades de verde, salpicada do vermelho das papoilas, até amarelecer gradualmente e ficar seca. No fim de Junho, princípios de Julho, à saída da missa ou na taberna, marcava-se o dia da ceifa que, por troca ou à jorna, reunia um número considerável de homens e mulheres. Estas, com chapéu de palha, meias grossas e mangas compridas, procuravam proteger-se do calor do sol e das picadas dos finos caules que, de tão secos, feriam a pele; os homens, mais afeitos aos raios solares, arregaçavam as mangas das camisas desafiando o contacto inevitável, mas suportável. Os ceifeiros, em linha recta, munidos da foice ( instrumento curvo para ceifar) e das dedeiras ( pedaço de couro para proteger os dedos), curvados, iam cortando braçadas de seara que iam atando com um vencilho ( espécie de corda feita com algumas hastes) que em pequenos molhos ficavam sobre o restolho ( parte inferior do caule que, depois da ceifa, fica agarrado à terra) para serem enfeixados e levados para a eira.
O calor apertava, o suor escorria, a cantarinha de barro, passando de boca em boca, mantinha por pouco tempo a água fresca da nascente que nem sempre ficava próxima.
De vez em quando, o rastejar ondulante de uma cobra suscitava alguma agitação, mas quase sempre se escapava no meio da seara ainda por cortar; nós, a pequenada, que noutros trabalhos podíamos ajudar, neste não havia nada que pudéssemos fazer. Nem sequer apanhar o lenticão ( excrescências nas espigas de centeio) que, diziam, se vendia para fazer tinta. Mandavam-nos brincar à sombra de algum pinheiro ou carvalho mas isso era sol de pouca dura… depressa nos afastávamos para descobrir qualquer coisa, nem que fosse um lacrau debaixo de uma pedra que, de propósito, removíamos…
Ao meio da tarde, os ceifeiros, cansados, suados e espicaçados ganhavam ânimo quando alguém, em voz alta, dizia:
- Vamos a isto! Tem que se acabar para ganharmos a bicha! ( Merenda reforçada ao finalizar um trabalho). Quantas vezes, já perto do toque das Avé-Marias, se sentavam no chão para saciar a fome enquanto as bacias de arroz-doce esperavam que as colheres fossem distribuídas …nós, com o braço curto e fome de guloseimas, tínhamos direito a uma bacia mais pequena e, à volta dela, às colheradas, depressa a esvaziávamos…
Embora houvesse quem possuísse eira própria, era usual fazer a malha do centeio na eira do Outeiro, ao cimo da Quelha, numa rocha grande e plana de difícil acesso. Os molhos de centeio eram devidamente acamados, com as espigas colocadas na mesma direcção. Um grupo de homens de manguais (instrumento de malhar cereais) no ar, sincronizados no revirar e no bater, iam fazendo com que a palha se separasse do grão.

Ainda no decorrer da nossa infância a malhadeira (debulhadora) veio substituir este trabalho manual. Funcionava no Paço, onde havia espaço para, individual e sucessivamente, se proceder à debulha do centeio produzido na povoação. A máquina não podia parar: todos se ajudavam mutuamente; por um lado entravam as espigas, por outro saía a palha, de um buraco largo aparava-se o grão nos sacos de serapilheira que, quando houvesse vagar, seriam convertidos em alqueires ( medida de capacidade para cereais equivalente a treze litros, aproximadamente). As praganas ( barba de espiga de cereais) misturadas com o pó da palha, saltavam no ar, o motor fazia um barulho ensurdecedor lançando uma fumarada negra, espessa, mal cheirosa e a agitação humana, imprescindível, constituíam um espectáculo curioso propositadamente observado mesmo por quem não tinha palha nem grão.
Posteriormente, o cereal guardava-se no arcaz e, com a palha, faziam-se os palheiros para a acondicionar e proteger da chuva; colocada em camadas circulares à volta de um esteio de madeira, cobriam-se com giestas e ali permaneciam no cimo das fazendas ( terrenos cultivados) à espera de uma mão certeira que, com um só puxão, retirasse a palha sem a partir.

De nada valiam os avisos sobre os perigos de ir ver a malhadeira a trabalhar! Às escapadelas, a correr, lá íamos de vez em quando. Mesmo desobedecendo, ainda bem que fomos porque do ver ao ouvir dizer, vai uma grande diferença. Só assim, passado meio século, podemos escrever sobre o que os nossos olhos, no meio daquela poeirada, pela primeira vez observaram: a substituição do esforço humano pela mecanização.

Certa vez, que a debulhadora avariou, aparentemente sem nenhuma causa, haviam de tomar as culpas a uma mulher que, pelo facto de o seu centeio não ter entrado quando ela queria, embruxou a máquina fazendo-a parar. Foi o cabo dos trabalhos!
Nós, que já anteriormente fazíamos figas quando passávamos por ela, daí em diante ainda fazíamos com mais força, com as duas mãos escondidas porque éramos mais frágeis do que a malhadeira e era muito fácil acreditar no que ultrapassava a nossa compreensão.

terça-feira, 9 de março de 2010

Trabalhos Rurais - A sementeira das batatas -. Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Quando as pastagens dos lameiros tinham terminado e as cancelas deixavam de ter uso, procedia-se à preparação da terra para semear as batatas sendo a rambana e a ranconce as variedades predominantes. A primeira, arredondada e lisa cozia-se mais depressa e, não havendo cuidado, quase se esfarelava; a outra, mais alongada e dura, aguentava-se mais tempo sem apodrecer. Burros e cavalos transportavam, nas cangalhas, (armação de madeira em que se sustentava e equilibrava, metade para um lado, metade para o outro a carga das bestas) o esterco amontoado na estrumeira proveniente dos porcos, ovelhas, galinhas e coelhos…e não só…como nada era desperdiçado, também a cinza da fogueira era aproveitada para ajudar a terra dura a produzir melhor. Se o terreno era pequeno cavava-se com enxadas que a força dos braços de homens rijos erguiam no ar e, em ritmo certo, cravavam no chão revolvendo a terra. Se o lameiro tinha uma geira ( terreno que uma junta de bois podia lavrar num dia) chamava-se o lavrador que, segurando a rabiça do arado, direccionava a relha que ia rasgando o solo. Não sendo um trabalho para mulheres, a elas pertencia a tarefa de preparar as cestadas de comida que, à cabeça, transportavam até ao campo. O garrafão de cinco litros já tinha ido logo de manhã, a acautelar a sede. Em ambos os casos, constava a petica ( mastiga antes de começar o trabalho), o almoço ( por volta das nove horas, composto de batatas, bacalhau, migas e chícharos ( feijão frade), o jantar, ao meio dia, em que não faltava o feijão cozido com bastante carne de porco e, ao final da tarde, a merenda em que os condutos abundavam para pôr em cima das fatias de pão de centeio: chouriça, farinheiro frito, um pedaço de queijo corado; de vez em quando, levava-se à boca uma azeitona para não parecer mal. Estendia-se no chão a toalha que tapava a cesta, num sítio seco e abrigado onde não se vissem formigas e cada um se sentava como podia: uns no cabo da enxada, outros numa pedra tirada de um muro, outros num casaco velho…todos se acomodavam numa circunstância que lhes era habitual. Se, de repente, vinha uma chuvada, era uma atrapalhação e corria-se para a cabana, se existisse, onde a refeição continuava e se esperava que estiasse.
Após a lavragem, era necessário agradar ( alisar e destorroar o terreno com a grade) para depois de se deixar secar, se iniciar a sementeira das batatas. Estas, compradas ou do ano anterior, já com os grelos nos “olhos”, tinham que ser manejadas com cuidado de modo a que cada bocado tivesse um grelo ou dois. Na área a semear, dividida em courelas, um homem com uma enxada e uma mulher com uma cesta cheia de batatas partidas, começavam numa ponta e acabavam na outra: ele abrindo um rego, ela colocando os pedaços de batata com espaços de dois palmos, mais ou menos. Assim sucessivamente, a terra de um rego cobria o rego anterior ficando, no final, uma sobreposição de camadas de terra de aparência agradável à vista.
Na Terça-Feira próxima já havia um pretexto para ir à Vila: comprar molhadas de couves galegas que não tivessem potra ( doença dos vegetais, caracterizada por saliências nodosas) para plantar nos regos que separavam as courelas e ter, se pegassem, fartura de caldo para a sopa e para os animais.
Quando, passadas algumas semanas, depois de ancinhada, na terra negra se começavam a descobrir as pequenas folhas verdes das batateiras era sinal de que a semente tinha sido boa e prenúncios de um bom batatal, caso não viesse uma geada tardia que o queimasse. Depois, vinha a rega, a sacha, o adubar, a cura para matar a praga dos escaravelhos. E, quando a rama começava a ficar seca, era sinal que as batatas estavam criadas e prontas para tirar.
Outra azáfama: de novo, as enxadas e as cestas: as primeiras a deixar um rasto de batatas de tamanhos diferentes que as mulheres iam apanhando separadamente: primeiro as graúdas, a seguir as da semente, as miúdas para dar aos porcos; por último, as que tinham sido cortadas pelas enxadas que nunca eram muitas que a prática aguçava o engenho. Tinham que ser consumidas com brevidade porque iam apodrecer. Como era gratificante ter uma boa colheita de batatas! Para vender e ter a casa farta, uma vez que todos os dias se gastavam e não se podia passar sem elas.
Nós, que depois da escola corríamos para o campo, íamos crescendo e acompanhando estas vivências de uma rotina anual que pensávamos que fosse para sempre… como se aquelas enxadas e cestas viessem a ser por nós utilizadas na faina das batatas de geração em geração…
Espalhados pela terra ficavam pequenos montes das hastes das batateiras que o calor do sol acabava por ressecar. Nós, a garotada irrequieta a precisar de grilos para armar as costelas (armadilha para pássaros), arredávamo-los e, com a mão em concha sobre o solo quente, um a um os tentávamos apanhar perseguindo-os no seu saltitar à medida que os íamos metendo no ralo de um regador de zinco. Foi há tanto tempo…mas as memórias de infância são tão fortes que parece que ainda sentimos as cócegas que, na mão fechada, nos faziam rir e saltar de contentamento.
Um sujeito da nossa terra, cujo nome bem lembramos, daqueles que nasceram para não terem grandes preocupações, armou-se, um ano, em comprador de batatas. Na verdade, ainda comprou umas sacas a uns vizinhos que não esperaram pelo negociante de fora. Aconteceu, porém, que o passar do tempo ou o indevido acondicionamento, fez apodrecer as batatas acarretando-lhe um prejuízo superior às suas posses. O facto foi conhecido e deu azo a comentários sobre a falta de sensatez do “falhado comerciante”.Certo dia, apareceu na aldeia um louceiro que, trocando louça por batatas, e destas já haver em quantidade, perguntou se, por ali, alguém as comprava. Ora, por brincadeira, foi-lhe indicado o referido comprador que, com os nervos à flor da pele, dissera para o inocente louceiro:
- O quê? Comprar batatas? Só faltava mais esta! Lá vem você a chatear-me com as batatas!
Ao vivo, teve mais graça porque o homem gaguejava e as palavras, sobretudo as “ batatas”, enrolavam-se-lhe na boca e não saíam à primeira…

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vila Boa do Mondego - Ramo de oliveira com azeitonas

Uns ficaram, outros partiram
e não importa a distância...
Todos estão envolvidos
nestas memórias de infância...

Vila Boa do Mondego - Trabalhos Rurais - A apanha da azeitona - Anos 50/60

    O trabalho do campo dava que fazer o ano inteiro, independentemente do frio intenso do Inverno ou do calor abrasador do Verão.
    A apanha da azeitona, para quem tinha oliveiras, constituía uma tarefa árdua. A partir de Novembro, ia-se apanhando a que caía no chão, batida pelo vento, que se colocava na tulha, na loja (arrecadação), à qual se misturava sal para não se estragar. O dia da vareja, sempre condicionado pelo estado do tempo, era um trabalho de grupo, de permuta, em que homens e mulheres, expostos ao frio cortante que vinha da Serra, não podiam perder muito tempo a aquecer as mãos na fogueira que, ali perto, tinham que acender. As mulheres estendiam os toldes ( panos largos e compridos) debaixo das oliveiras e, sobretudo, sobre os silvados dos barrancos que impediam que se apanhassem as azeitonas que neles caíssem. Os homens subiam às oliveiras que, na época que referimos, eram altas, grandes, centenárias, em que os limpadores apenas cortavam o essencial, de modo a deixarem ramagem que permitisse uma boa colheita. As varas, compridas e duras, impulsionadas pela força dos braços, faziam cair as bolinhas negras que seriam transformadas em azeite. Era preciso aproveitá-las bem, apanhá-las uma a uma, procurá-las entre as ervas molhadas…a que caía nos toldes, com rama, guardava-se em sacos para erguer ( retirar as folhas) num dia de vento.
   À noite, com mais vagar, à luz da candeia, ao lume, escolhia-se a que era para curtir ( macerar em água) e deitava-se num pote de barro, com mudanças de água, até ao mês de Abril. Por fim, cobertas com muito sal e folhas de louro iriam servir, ao longo do ano, para substituir outro conduto.
   Finalizada a apanha da azeitona, esperava-se pela vinda dos lagareiros para a ensacarem e levarem para o lagar. Na nossa aldeia não havia nenhum. Mas, o de Vila Soeiro e Vale de Azares funcionavam dia e noite para converter o número de sacas em litros de azeite, havendo o cuidado de saber em qual deles fundia mais .
   Ouvíamos contar que uma mulher da nossa terra, tinha passado uma noite num destes lagares para ter a certeza de que o seu azeite provinha das suas próprias
azeitonas e que não era enganada…os lagareiros, depois de terem partilhado com ela as batatas e o bacalhau assados nas brasas, bem regados com azeite, em ar de maroteira lhe terão dito :
  - Olhe, as suas azeitonas vão entrar agora na prensa!
   Muito cedo, soubemos compreender a importância do azeite e a primazia de quem o possuía. Tê-lo para o ano inteiro, poder pagar favores com ele, cumprir promessas para alumiar o Santíssimo Sacramento…porque não havia maior tristeza, ou pobreza, do que comer as batatas sem azeite. Por isso, tinha razão de ser que, algumas pessoas andassem ao rebusco na tentativa de conseguir uns litros do precioso líquido.
   No dia da chegada do azeite era conveniente prová-lo. Fazia-se à noite, quando a fogueira já tinha boas brasas. Cortavam-se fatias de pão centeio que se colocavam ao calor do brasido e se molhavam num prato com um pouco desse azeite, virando-se dos dois lados para ensopar bem! Para nós, que gostávamos de provar tudo, comíamos e lambíamo-nos porque o que se comia com raridade era sempre bom. E, como conhecíamos a expressão popular “tão fino! Parece que bebe azeite”, aproveitávamos a oportunidade e quase o bebíamos também…sem nenhum intuito, apenas porque, nos outros dias, era preciso poupá-lo…