segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Linguagem e Comunicação - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

O aglomerado populacional desta pequena aldeia, expressava-se numa linguagem verbal simples, basicamente rural, assente na motivação e interesses comuns que, por norma, resultava numa comunicação eficiente complementada com gestos e expressões corporais. Através dela, se relatavam as cheias da ribeira, as pragas dos escaravelhos das batatas, os porcos cevados que morriam de doença, as nascentes que secavam, as geadas que queimavam as colheitas, o leite das ovelhas que tinha secado, as galinhas que deixaram de pôr, os figos a secar que tinham apanhado chuva, os míscaros que rareavam nos pinhais…as oliveiras que tinham limpado bem, a copa florida das árvores de fruto que parecia um andor, a ninhada de pitos sem ovos goros, as azeitonas que já tinham a água de Abril, o sucesso da ida da cabra ao bode, fundamentavam as conversas nos trabalhos, nas fontes, nos lavadouros da ribeira. Outros temas, mais delicados, eram abordados nas tabernas, na barbearia, à soleira das portas, nos largos ( recordamos o Largo das Linguarudas) onde se passava a pente fino a vida alheia: quem nunca se confessava, quem comungava vezes de mais, quem ia à Vila para laurear o queijo ( sem motivo), quem tinha cortado o cabelo para fazer permanente, quem tinha calotes na taberna, quem trazia os filhos sujos, quem apanhava porrada dos maridos, quem se embebedava, quem fazia azeite sem ter oliveiras, quem andava de relações cortadas, quem se vestia a parecer fidalgo, quem não aprendia na escola, quem se comprazia a falar da vida dos outros…

As novidades espalhavam-se, aumentavam de conteúdo e gravidade, formando um colectivo noticioso aprofundado à noite ao redor da fogueira ou a apanhar o fresco à porta de casa onde nós, as crianças daquele tempo, a mexer no lume ou a contar estrelas, consciente e interessadamente, ficávamos a saber quase tudo.

Papel relevante na comunicação oral, com repertório exclusivo, pertencia ao Diário Capenga. Montado na velha burra, percorrendo as feiras dos arredores, presenciava outro tipo de informações, observava e participava em transacções ousadas que, pelas ruas da aldeia, sem descer da jumenta, a pedir segredo, transmitia a quem lhe desse conversa: fulano comprou ovelhas fiadas, sicrano vendeu um porco que deixara de comer, beltrano emprestou dinheiro a…na verdade, nada disto nos despertava interesse a não ser o abanar ritmado da cauda do animal parado para sacudir as moscas enquanto esperava que o dono coxo relatasse o seu diário.

Ocasionalmente, aparecia o Manelzinho Cantador. Entrado na idade, de saco às costas e cajado na mão, cantava quadras de amores traiçoeiros e atraiçoados com finais dolorosos e trágicos. Personagem enigmática, utilizava sempre a mesma resposta independentemente das perguntas que lhe fossem feitas:
- Num copo de água chalada
- Me quiseste envenenar.
- Tu, foste para a cadeia.
- Eu, fui para o Hospital.

Dizia-se que, em jovem, o efeito de uma bebida dada por uma rapariga, lhe causara distúrbios mentais que o afectariam para toda a vida.
Sentado ao sol nas pedras de um balcão entretinha-se a dobrar e redobrar bocados de arame que tinham a finalidade de prender o fio da linha ou da lã no ombro esquerdo a substituir a pouca graça do alfinete - de - dama nos lavores femininos. A sua presença era indiferente aos homens, algumas mulheres compravam a pequena peça artesanal e andavam. Mas nós, longe de sabermos que de poeta e de louco todos temos um pouco, mantínhamos as expectativas e não arredávamos pé até que a veia poética lhe acudisse à mente e desfiasse histórias amorosas que, embora tristes, nos encantavam e comoviam por falarem de amores tão fortes, dores tão profundas, finais tão arrepiantes que, vulneráveis nas razões do coração, fazíamos o propósito de nunca amar tanto para não sofrer assim.

A tradição oral, pela boca dos mais idosos, deu-nos a conhecer factos bizarros de lobisomens, de cavalos que corriam e relinchavam pelas ruas sem poderem ser vistos, de cães brancos que irradiavam luz, de feiticeiras que, certas noites, se banhavam no rio, de bruxas, de maus olhados, de piares de corujas que anunciavam mortes, de uivar de cães que era mau presságio, de entornar azeite que trazia azar, de facas cruzadas que não era bom…tudo ouvíamos sem ousar duvidar, com acrescentes da nossa imaginação infantil. Nesse tempo e no nosso, nas noites de escuridão cerrada, tudo poderia acontecer…

Um outro tipo de linguagem, de cariz apelativo, verificava-se nos sermões das missas de Domingo cuja mensagem, por vezes, se diluía na distância cultural entre os interlocutores. Certa vez, no decorrer da Guerra Colonial, a alusão à mensagem da Senhora de Fátima aos Pastorinhos … “esta guerra vai acabar” , foi interpretada, por muitos, com regozijo, como se do fim da Guerra em curso se tratasse.

Era nas desavenças, quando a língua se desenfreava, acompanhada por gestos intuitivos, que a verdadeira comunicação se estabelecia. Os homens, mais parcos nas palavras e pródigos nos actos, com chapéus atirados ao chão e umas cuspidelas provocatórias aos socos e pontapés, às vezes com o cabo de um sacho e umas cabeças partidas, se entendiam; as mulheres alongavam as dissertações e, de mãos fincadas nos quadris, depois de “badalhocas”, “sonsas”, “que eu morra ceguinha de gota serena”, “ mil carbúnculos me nasçam”, “sua esta”, “sua aquela”, assumiam posições de corpo a corpo: os lenços da cabeça caíam, os cabelos desgrenhados ficavam à mão de semear, as blusas desabotoavam-se e saiam das saias, os aventais desatavam-se, os pés descalçavam-se …uns arranhões, umas riças de cabelo a menos e umas nódoas negras punham fim ao desentendimento.

Da comunicação escrita apenas beneficiava uma parcela desta comunidade em que a maioria das pessoas, sobretudo as mais idosas, não tinha frequentado a escola. Ser analfabeto representava, na época, uma realidade humana que, por condições concretas de existência, não necessitava de ler nem escrever. À taberna, de vez em quando, chegavam Jornais cujas notícias, de tão complexas, lidas em voz alta, entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Fragmentadas, acabavam por ser absorvidas pelo colorau, sal e canela dos cartuchos. A divulgação do Arauto da Verdade, no âmbito do Concelho e distribuído pelo Pároco, apenas dedicava um espaço muito reduzido a Vila Boa do Mondego onde constavam óbitos, partidas e chegadas de emigrantes e os donativos oferecidos à Igreja que, para evitar falatório, era frequente virem anónimos.

Nas feiras, havia quem comprasse o Almanaque que, em edição anual, além do Calendário com sinalização de Feriados e Dias Santos de Guarda, fazia vagas previsões do tempo, referia as Fases da Lua e Folhetos desdobráveis com tragédias amorosas em versos de fazer chorar. Alguém lia, alguém ouvia, tudo se esquecia. A escrita não constituía uma necessidade premente nem assumia papel relevante na materialização do pensamento, excepto quando era necessário ler ou escrever cartas. O envolvimento de outra pessoa, a quem tinha que se dar a vida a saber, não era feito de ânimo leve. Em regra, era assunto de mulheres. Se bem que a leitura das cartas não se fizesse esperar, dar-lhes resposta implicava, de ambas as partes, vários “quando tiver vagar”…
O Correio chegava à aldeia de bicicleta, numa saca grande de lona, fechada com cadeado, grande de mais para a escassa correspondência. Quem morava próximo, não perdia a leitura do Correio, em voz alta, cujos destinatários presentes se apressavam a receber. Ter uma carta era ter importância, independentemente do remetente e conteúdo!
A ti Jaquina, de idade avançada, passava horas no Largo da taberna, sentada no comprido banco de pedra, à espera do Correio. Era uma referência para se saber se o Correio já tinha chegado. Não sabia ler nem escrever, mas sabia quem recebia cartas e encarregava-se de as entregar a quem morava próximo da Capela. Levava sempre cartas ou postais acumulando nas mãos notícias mudas, quem sabe na esperança de as receber do Brasil para onde fora a sobrinha que criara de pequenina e, de tempos a tempos, lhe escrevia.

As cartas davam-se a ler em qualquer sítio. Escondidas debaixo do avental, ainda por abrir, iam ao encontro da pessoa certa, se estivesse sozinha, como se desvendar um segredo se tratasse. A compreensão do conteúdo, condicionada pela aptidão de quem lia e pela destreza de quem escrevia, fazia-se lentamente ora avançando ora regredindo permitindo, com repetições sucessivas das frases, a memorização quase integral do texto. A bem dizer, apenas a parte do meio, pois o começo e o fim já era sabido de cor:” Espero que ao fazer desta todos se encontrem bem, nós cá andamos na forma do costume”…e “ficamos à espera de resposta vossa na volta do correio, saudades, abraços e beijinhos, desta ou deste”… a verdade, é que um pedaço de papel activava imagens, factos, sentimentos, recordações; eram duas mulheres emocionadas; uma porque lera outra porque ouvira ler. Esta, limpando os olhos à ponta do avental, confundida entre alegria e tristeza, nem atinava com palavras para agradecer que, pensando bem, quem não conseguia descodificar um simples texto não poderia ter um vasto vocabulário.

Escrever uma carta tinha o seu ritual. Fazia-se sempre na mesa da sala depois de se arredar tudo o que pudesse estorvar: a jarra das flores, o açafate da costura, um chapéu, uma chave, um prato com figos secos. Mulheres e cadeiras, desajustadas pela ausência do hábito, com algum incómodo se iam arrastando para junto da mesa em sintonia com a inspiração que, raras vezes era necessária. Enquanto a que ditava a carta se ia lamentando por não saber o que dizer, já a que escrevia tinha umas linhas preenchidas para consolo da primeira. Redigiam a meias. Notícias dos familiares, dos vizinhos, um ou outro enredo curioso que, a medo, se mandava pôr e, quando chegava a altura de escrever no verso, era um alívio não tanto pelo conteúdo, mas pela extensão e o fim à vista que já não parecia mal. As cartas em pouco diferiam a não ser no endereço e remetente que, à falta de linhas, ora subiam ou desciam recaindo a culpa na mesa que baloiçava ou nas pernas tortas da cadeira.

2 comentários:

odili@ disse...

Estou encantada com a tua excelente memória.Este blogue é um rico património, é riqueza cultural do povo que teve o privilégio de te ver nascer no seu seio.
Já te ofereci o livro em branco que, com estas modernices dos PCs, nunca vai ser escrito que eu sei, mas agora ainda dá menos trabalho é só fazer copy e entregar a pen na editora. Depois fechas o blog pra venderes o livro... e eu compro o nº 2. jinhos

Alvagada disse...

Agradeço o teu comentário, que me deixou feliz. Consegues, com facilidade, compreender o âmago do que escrevo porque conheces a minha aldeia e me conheces a mim...quanto à publicação do livro, se levada a efeito, é mais uma sugestão tua, pois há muito tempo a isso me incentivaste. Farei muita questão que estejas presente...quem sabe nesse cantinho da Serra...para te oferecer, incluindo-te nos "agradecimentos" e com uma dedicatória muito especial, o tal nª 2...