quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vila Boa do Mondego - Ramo de oliveira com azeitonas

Uns ficaram, outros partiram
e não importa a distância...
Todos estão envolvidos
nestas memórias de infância...

Vila Boa do Mondego - Trabalhos Rurais - A apanha da azeitona - Anos 50/60

    O trabalho do campo dava que fazer o ano inteiro, independentemente do frio intenso do Inverno ou do calor abrasador do Verão.
    A apanha da azeitona, para quem tinha oliveiras, constituía uma tarefa árdua. A partir de Novembro, ia-se apanhando a que caía no chão, batida pelo vento, que se colocava na tulha, na loja (arrecadação), à qual se misturava sal para não se estragar. O dia da vareja, sempre condicionado pelo estado do tempo, era um trabalho de grupo, de permuta, em que homens e mulheres, expostos ao frio cortante que vinha da Serra, não podiam perder muito tempo a aquecer as mãos na fogueira que, ali perto, tinham que acender. As mulheres estendiam os toldes ( panos largos e compridos) debaixo das oliveiras e, sobretudo, sobre os silvados dos barrancos que impediam que se apanhassem as azeitonas que neles caíssem. Os homens subiam às oliveiras que, na época que referimos, eram altas, grandes, centenárias, em que os limpadores apenas cortavam o essencial, de modo a deixarem ramagem que permitisse uma boa colheita. As varas, compridas e duras, impulsionadas pela força dos braços, faziam cair as bolinhas negras que seriam transformadas em azeite. Era preciso aproveitá-las bem, apanhá-las uma a uma, procurá-las entre as ervas molhadas…a que caía nos toldes, com rama, guardava-se em sacos para erguer ( retirar as folhas) num dia de vento.
   À noite, com mais vagar, à luz da candeia, ao lume, escolhia-se a que era para curtir ( macerar em água) e deitava-se num pote de barro, com mudanças de água, até ao mês de Abril. Por fim, cobertas com muito sal e folhas de louro iriam servir, ao longo do ano, para substituir outro conduto.
   Finalizada a apanha da azeitona, esperava-se pela vinda dos lagareiros para a ensacarem e levarem para o lagar. Na nossa aldeia não havia nenhum. Mas, o de Vila Soeiro e Vale de Azares funcionavam dia e noite para converter o número de sacas em litros de azeite, havendo o cuidado de saber em qual deles fundia mais .
   Ouvíamos contar que uma mulher da nossa terra, tinha passado uma noite num destes lagares para ter a certeza de que o seu azeite provinha das suas próprias
azeitonas e que não era enganada…os lagareiros, depois de terem partilhado com ela as batatas e o bacalhau assados nas brasas, bem regados com azeite, em ar de maroteira lhe terão dito :
  - Olhe, as suas azeitonas vão entrar agora na prensa!
   Muito cedo, soubemos compreender a importância do azeite e a primazia de quem o possuía. Tê-lo para o ano inteiro, poder pagar favores com ele, cumprir promessas para alumiar o Santíssimo Sacramento…porque não havia maior tristeza, ou pobreza, do que comer as batatas sem azeite. Por isso, tinha razão de ser que, algumas pessoas andassem ao rebusco na tentativa de conseguir uns litros do precioso líquido.
   No dia da chegada do azeite era conveniente prová-lo. Fazia-se à noite, quando a fogueira já tinha boas brasas. Cortavam-se fatias de pão centeio que se colocavam ao calor do brasido e se molhavam num prato com um pouco desse azeite, virando-se dos dois lados para ensopar bem! Para nós, que gostávamos de provar tudo, comíamos e lambíamo-nos porque o que se comia com raridade era sempre bom. E, como conhecíamos a expressão popular “tão fino! Parece que bebe azeite”, aproveitávamos a oportunidade e quase o bebíamos também…sem nenhum intuito, apenas porque, nos outros dias, era preciso poupá-lo…

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Vila Boa do Mondego - A matança do porco - Anos 50/60

No tempo da nossa infância tudo tinha a sua utilidade própria, o supérfluo não existia nem no vocabulário nem na vida quotidiana. Os animais, não sendo de estimação, eram cuidadosamente tratados, na medida em que faziam parte integrante da vida económica das famílias. Entre eles destacava-se o porco que passava a vida na pocilga a comer, dormir e fazer estrume na palha de centeio e giestas. Comprado de pequenino na Feira da Carrapichana ou na Feira Nova, depois de bem escolhido para não trazer mazelas, levava-se ao colo até se meter num canastro ( cesto de verga de bordos altos) para ser transportado num cavalo ou num burro. A primeira preocupação era ver se o animal comia! A partir daí, a panela grande de ferro permanecia junto do lume onde se coziam couves, nabos, batatas, abóboras que, já no caldeiro, com umas mãos-cheias de farelo, constituía a vianda ( alimentação) diária do suíno que, se ninguém lhe deitasse “mau olhado”, seria suposto crescer e engordar a olhos vistos. O mais desejável seria ter dois porcos no curral: um para matar, outro para vender. Porém, isto de ter um porco já não era para todos, quanto mais cevar dois…
No decorrer do Inverno, combinava-se o dia da matança. O “matador” e os ajudantes, escolhidos entre os amigos, depois da bucha ( alimento que se mete à boca duma vez) e uns copitos de aguardente, tinham a seu cargo um trabalho que, na vizinhança, não passava despercebido quer pela agitação, quer pelo berrar do porco! A nós, mandavam-nos embora, não nos queriam ali! Decerto para não atrapalharmos e para nos pouparem ao acto violento que, afinal, era inevitável. Contudo, disfarçadamente, dávamos umas espreitadelas e, víamos tudo, curiosos e condoídos, mas tínhamos que ver…
Mais uma vez a solidariedade feminina se evidenciava e as mulheres partilhavam os trabalhos inerentes a esta tarefa. Uma delas, que tinha que ser corajosa, apressava-se a colocar o alguidar de barro, com vinagre no fundo para o sangue não coagular, debaixo da cabeça do “condenado”já estendido num banco tosco de madeira. A seguir, chamuscava-se o pêlo com palha de centeio, deitava-se água, raspava-se com pedras e facas até ficar liso. Em seguida, utilizava-se o chambaril (pau curvo que se enfiava nos jarretes do porco morto ) para o abrir e pendurar, numa trave da adega. Extraíam-se as tripas e demais miudezas que, num tabuleiro de madeira, exalando um cheiro quente e fumegante, as mulheres se encarregavam de levar à ribeira para separar, lavar, virar e lavar de novo. Nestas ocasiões, levava muita água e a corrente era forte…era o que valia!
O trabalho dos homens, neste dia, estava concluído e o almoço já os esperava. Mandava a tradição e a prudência que esta refeição constasse de carne do porco do ano anterior com a qual se havia feito um apetitoso cozido com couves, batatas e chouriça.
A tarefa das mulheres prolongava-se pela tarde. Era preciso fazer as morcelas e os farinheiros: num alguidar, o sangue; noutro, o pão aos bocadinhos, noutro as tripas; um cartucho com cominhos, outro com pimentão, mais outro com colorau…em cima da trempe uma caldeira com água a ferver, ali ao lado as enchedeiras ( pequeno funil para meter o conteúdo na tripa)…a cozinha era uma confusão até que as varas do fumeiro suspendessem os enchidos.
No dia seguinte, procedia-se à desmancha. A carne era devidamente cortada de acordo com o fim a que se destinava: a que ia para a salgadeira ( espécie de arca de madeira), a que se destinava às chouriças, que ficava uns dias em vinho e alho, os presuntos, o toucinho, a que era para distribuir…era hábito oferecer, a quem se entendia, um prato com carne fresca da matança do porco: um bocado de fígado, de febra, de costela que, quem recebia e matava porco, retribuía de igual modo. Éramos nós, que pouco fazíamos e só estorvávamos, que íamos de casa em casa, contentes por dar e ser prestável.
Ter a salgadeira cheia, enchidos no fumeiro, chouriças no azeite ( para se conservarem) e um pote de barro com banha, devia ser um desafogo numa economia rural de subsistência. No entanto, nesses tempos agora tão distantes, estas conjecturas não ocupavam as nossas ideias. Pensávamos era na bexiga do porco que, depois de seca, servia para jogar a bola…

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Vila Boa do Mondego - Salão anexo à antiga Escola ( restaurado)


Exteriormente, permanecem estas pedras de granito inalteráveis ao tempo. Apenas diferem nas juntas pintadas de branco...num propósito inverso ao embranquecer dos nossos cabelos...

Vila Boa do Mondego - Os casamentos - Anos 50/60

As condições económicas da época não permitiam grandes gastos, por isso, tudo se resumia a uma cerimónia simples que, no entanto, animava quase todos os moradores: uns porque eram familiares, outros convidados, muitos por curiosidade, os noivos porque deixavam de ser noivos e nós, a garotada, que dávamos fé de tudo.
A tradição impunha que, se a noiva fosse natural da aldeia, aqui se realizasse a boda. Caso o noivo viesse de fora, era – lhe aplicada a modalidade de “pagar o vinho”que consistia em pagar copos de tinto a todos os presentes que, numa determinada noite, se encontrassem na Taberna. Como havia duas, lá entrava o noivo forasteiro em despesas e, para não ficar mal visto, mandava encher os copos logo que se esvaziavam. Para estes, a festa começava com antecedência e, por vezes, já dava que falar no dia seguinte.
No Forno Grande coziam-se cestadas de biscoitos e outros bolos para os quais se haviam guardado os ovos e era uma sorte se as galinhas andavam a pôr! Até o Bolo da Noiva aqui era confeccionado! A massa era a mesma, só eram precisos três ou quatro formas, de tamanhos diferentes, para empilhar os bolos e barrá-los, depois, com açúcar para ficar todo branco, como convinha. Terminada esta tarefa, deitava-se de novo o lume ao forno que, além de já ter descaído, necessitava de maior temperatura para assar os tabuleiros de carne que, entretanto, haviam sido preparados. O arroz-doce era feito mesmo na véspera, para ficar brandinho, com leite fresco de ovelha que se tinha ou alguém dava. Como era hábito distribuir pequenas bacias de barro pelos vizinhos que não tinham sido convidados, a quantidade tinha que ser grande e tinha que ficar bom! O que valia era que havia sempre mulheres habilidosas que, nestas situações, se disponibilizavam e sabiam fazer tudo…A sala do banquete, normalmente, era o Salão anexo à escola ou outra sala grande que alguém cedia.
No dia aprazado, os noivos e convidados encontravam-se na igreja que, no dia anterior, tinha sido abundantemente enfeitada com flores que as pessoas colhiam nos quintais, junto às poças e, com gosto, ofereciam. O noivo, no seu fato novo, nem parecia o mesmo rapaz e a noiva, com o vestido branco e o véu de tule que, desde casa levantava com as mãos para não arrastar nas pedras da calçada, segurava o ramo de espargo salpicado de flores.
Enquanto a cerimónia se realizava, ( a esta parte nós nunca assistíamos), íamos preparando as “trincheiras”! Eram cadeiras em cujo assento estendíamos um paninho branco, bordado ou de renda, com um pratinho no meio, emoldurado de pétalas. Colocávamo-las em fila, no meio da rua, desde a porta do adro, para recebermos as moedas que os noivos e convidados ali quisessem deitar. Cada um de nós, encostado à sua “trincheira”, ia olhando, sorrindo e esperando que algo tilintasse…se, por ventura, calhava ser uma moeda de vinte e cinco tostões era o máximo que poderíamos almejar! Para nós, era a parte mais interessante dos casamentos. Não queríamos ser noivos nem convidados, apenas queríamos que alguém se casasse para termos, uma vez mais, a nossa “trincheira”.