A vida decorria normalmente na nossa pacata aldeia no início da década de sessenta onde alguns acontecimentos locais constituíam preocupações pessoais que, por curiosidade ou solidariedade, se estendiam a todos. As notícias vindas de fora, atrasadas e deturpadas, pouca influência tinham e depressa eram esquecidas. Porém, a realidade da Guerra do Ultramar havia de interferir marcadamente na população em que jovens rapazes estavam prestes a cumprir o serviço militar. Ouvíamos dizer que, no passado, homens da nossa terra tinham andado na Guerra em países distantes. Os nossos pais contavam as suas aventuras da tropa que, por serem as primeiras fora da aldeia, não mais esqueceriam: a recruta, a continência aos Oficiais, os toques do clarim, o aparelhar dos cavalos, o render da sentinela, o campo de manobras, o rancho, a formatura na parada, o dia do juramento de bandeiras… porque, diziam com vaidade, era preciso ir à tropa para ser homem.
Porém, uma realidade bem dura havia de modificar a interpretação e aceitação dos factos: a Guerra de África. Inevitavelmente, esta expressão ensombrou o céu da aldeia. Embora houvesse quem tentasse explicar que se tratava da defesa das antigas Províncias Ultramarinas, consideradas território nacional, baseando-se ideologicamente num conceito pluricontinental e multi-racial, a verdade é que, para quem não sabia ler nem escrever, não dispunha de conhecimentos políticos, geográficos e económicos que permitissem o entendimento da Guerra Colonial em curso. Concluía-se que era obrigatório lutar em terras longínquas, para lá do mar, contra povos de raça negra que habitavam nas florestas.
Também nós nos apercebemos da gravidade da situação, pelo pulsar latente do povo. Na escola, ao estudarmos os Descobrimentos, a colonização de Angola e Moçambique, as Terras do Mapa Cor-de-Rosa, adquiríamos saberes históricos programados que, emoldurados pela imaturidade da infância, outra visão não tínhamos para além da generalizada. Tudo se agudizou aquando da afixação do Edital, na Taberna, descriminando os nomes dos primeiros rapazes mobilizados. Os familiares gritavam, a vizinhança acudia, os gritos das mães faziam partir o coração…
Seguia-se a espera de notícias, ansiosa e longa, que iam mitigando saudades sem desvanecer sobressaltos: faziam-se promessas, acendiam-se velas nos altares, alumiava-se o Santíssimo Sacramento. Porém, quando a ausência prolongada de carta ou aerograma fazia arrefecer a fé, as mães vestiam-se de escuro, cobriam a cabeça com um lenço negro e os pais deixavam de fazer a barba… Recordamos, porque presenciamos, o sofrimento de uma mãe, estendida no chão, por ter constado que o filho poderia ter morrido num ataque noticiado. Graças a Deus, todos regressaram sãos e salvos.
Apraz-nos registar, como prova de solidariedade e agradecimento, o almoço oferecido a toda a população de Vila Boa do Mondego pela família de um jovem regressado do dever cumprido. Foi um dia de festa! Havia pão, azeitonas, chouriça, grão de bico com arroz e carne de porco, castanhas cozidas e assadas e torneiras nas pipas à descrição, pois o vinho desse ano a isto estava destinado. Era uma multidão, abrigada debaixo de toldos no pátio da casa porque choveu o dia todo. Esta confraternização teve tal significado que apaziguou desavenças antigas entre familiares que, de bom grado, marcaram presença.
O entusiasmo contagiante desta refeição colectiva também surtiu em nós um certo estado de embriaguez que, ressalvando a diferenciação da bebida, se associava à alegria, às risadas de contentamento, à euforia de um povo em festa.
Tantos anos com estas lembranças a virem ao de cima! Quanto tempo a escrever, mentalmente, acontecimentos da infância!
2 comentários:
Está lindo demais.
Hoje bebi um café de tarde porque não controlava o sono e agora não consigo adormecer!
Mas para ler este post - que ainda não tinha encontrado disponibilidade para tal feito heroico - vale bem a pena a insónia!
Amanhã tomamos um "CHAZINHO" quando puder?
Beijinhos
Beijinhos
Fizeste-me regredir no tempo e recordar tristezas. A guerra colonial não poupou os jovens da minha terra.
Deixo-te a bela voz do Adriano Correia de Oliveira com imagens de grande tristeza - uma realidade que vivemos em Alcoutim.
http://il.youtube.com/watch?v=KRVNbVeXq0M&feature=related
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