quarta-feira, 24 de março de 2010

Trabalhos Rurais - A Ceifa e a Malha do Centeio - Anos 50/60 Vila Boa do Mondego

Os terrenos áridos das encostas, com pedregulhos amontoados de onde em onde, apenas permitiam a cultura do centeio baseando-se, unicamente, na sementeira e na ceifa. Na primeira, dois homens bastavam: o lavrador, com a junta de bois e o arado, e o semeador com um saco ao ombro para espalhar as sementes. Havendo a sorte de não se partir nenhuma relha, devido às pedras que abundavam, num dia ou dois fazia-se o trabalho tendo em conta que não havia áreas muito extensas. E tirava-se dali o sentido e tudo ficava ao sabor do tempo, desde o crescimento à formação da seara, com sucessivas tonalidades de verde, salpicada do vermelho das papoilas, até amarelecer gradualmente e ficar seca. No fim de Junho, princípios de Julho, à saída da missa ou na taberna, marcava-se o dia da ceifa que, por troca ou à jorna, reunia um número considerável de homens e mulheres. Estas, com chapéu de palha, meias grossas e mangas compridas, procuravam proteger-se do calor do sol e das picadas dos finos caules que, de tão secos, feriam a pele; os homens, mais afeitos aos raios solares, arregaçavam as mangas das camisas desafiando o contacto inevitável, mas suportável. Os ceifeiros, em linha recta, munidos da foice ( instrumento curvo para ceifar) e das dedeiras ( pedaço de couro para proteger os dedos), curvados, iam cortando braçadas de seara que iam atando com um vencilho ( espécie de corda feita com algumas hastes) que em pequenos molhos ficavam sobre o restolho ( parte inferior do caule que, depois da ceifa, fica agarrado à terra) para serem enfeixados e levados para a eira.
O calor apertava, o suor escorria, a cantarinha de barro, passando de boca em boca, mantinha por pouco tempo a água fresca da nascente que nem sempre ficava próxima.
De vez em quando, o rastejar ondulante de uma cobra suscitava alguma agitação, mas quase sempre se escapava no meio da seara ainda por cortar; nós, a pequenada, que noutros trabalhos podíamos ajudar, neste não havia nada que pudéssemos fazer. Nem sequer apanhar o lenticão ( excrescências nas espigas de centeio) que, diziam, se vendia para fazer tinta. Mandavam-nos brincar à sombra de algum pinheiro ou carvalho mas isso era sol de pouca dura… depressa nos afastávamos para descobrir qualquer coisa, nem que fosse um lacrau debaixo de uma pedra que, de propósito, removíamos…
Ao meio da tarde, os ceifeiros, cansados, suados e espicaçados ganhavam ânimo quando alguém, em voz alta, dizia:
- Vamos a isto! Tem que se acabar para ganharmos a bicha! ( Merenda reforçada ao finalizar um trabalho). Quantas vezes, já perto do toque das Avé-Marias, se sentavam no chão para saciar a fome enquanto as bacias de arroz-doce esperavam que as colheres fossem distribuídas …nós, com o braço curto e fome de guloseimas, tínhamos direito a uma bacia mais pequena e, à volta dela, às colheradas, depressa a esvaziávamos…
Embora houvesse quem possuísse eira própria, era usual fazer a malha do centeio na eira do Outeiro, ao cimo da Quelha, numa rocha grande e plana de difícil acesso. Os molhos de centeio eram devidamente acamados, com as espigas colocadas na mesma direcção. Um grupo de homens de manguais (instrumento de malhar cereais) no ar, sincronizados no revirar e no bater, iam fazendo com que a palha se separasse do grão.

Ainda no decorrer da nossa infância a malhadeira (debulhadora) veio substituir este trabalho manual. Funcionava no Paço, onde havia espaço para, individual e sucessivamente, se proceder à debulha do centeio produzido na povoação. A máquina não podia parar: todos se ajudavam mutuamente; por um lado entravam as espigas, por outro saía a palha, de um buraco largo aparava-se o grão nos sacos de serapilheira que, quando houvesse vagar, seriam convertidos em alqueires ( medida de capacidade para cereais equivalente a treze litros, aproximadamente). As praganas ( barba de espiga de cereais) misturadas com o pó da palha, saltavam no ar, o motor fazia um barulho ensurdecedor lançando uma fumarada negra, espessa, mal cheirosa e a agitação humana, imprescindível, constituíam um espectáculo curioso propositadamente observado mesmo por quem não tinha palha nem grão.
Posteriormente, o cereal guardava-se no arcaz e, com a palha, faziam-se os palheiros para a acondicionar e proteger da chuva; colocada em camadas circulares à volta de um esteio de madeira, cobriam-se com giestas e ali permaneciam no cimo das fazendas ( terrenos cultivados) à espera de uma mão certeira que, com um só puxão, retirasse a palha sem a partir.

De nada valiam os avisos sobre os perigos de ir ver a malhadeira a trabalhar! Às escapadelas, a correr, lá íamos de vez em quando. Mesmo desobedecendo, ainda bem que fomos porque do ver ao ouvir dizer, vai uma grande diferença. Só assim, passado meio século, podemos escrever sobre o que os nossos olhos, no meio daquela poeirada, pela primeira vez observaram: a substituição do esforço humano pela mecanização.

Certa vez, que a debulhadora avariou, aparentemente sem nenhuma causa, haviam de tomar as culpas a uma mulher que, pelo facto de o seu centeio não ter entrado quando ela queria, embruxou a máquina fazendo-a parar. Foi o cabo dos trabalhos!
Nós, que já anteriormente fazíamos figas quando passávamos por ela, daí em diante ainda fazíamos com mais força, com as duas mãos escondidas porque éramos mais frágeis do que a malhadeira e era muito fácil acreditar no que ultrapassava a nossa compreensão.

terça-feira, 9 de março de 2010

Trabalhos Rurais - A sementeira das batatas -. Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Quando as pastagens dos lameiros tinham terminado e as cancelas deixavam de ter uso, procedia-se à preparação da terra para semear as batatas sendo a rambana e a ranconce as variedades predominantes. A primeira, arredondada e lisa cozia-se mais depressa e, não havendo cuidado, quase se esfarelava; a outra, mais alongada e dura, aguentava-se mais tempo sem apodrecer. Burros e cavalos transportavam, nas cangalhas, (armação de madeira em que se sustentava e equilibrava, metade para um lado, metade para o outro a carga das bestas) o esterco amontoado na estrumeira proveniente dos porcos, ovelhas, galinhas e coelhos…e não só…como nada era desperdiçado, também a cinza da fogueira era aproveitada para ajudar a terra dura a produzir melhor. Se o terreno era pequeno cavava-se com enxadas que a força dos braços de homens rijos erguiam no ar e, em ritmo certo, cravavam no chão revolvendo a terra. Se o lameiro tinha uma geira ( terreno que uma junta de bois podia lavrar num dia) chamava-se o lavrador que, segurando a rabiça do arado, direccionava a relha que ia rasgando o solo. Não sendo um trabalho para mulheres, a elas pertencia a tarefa de preparar as cestadas de comida que, à cabeça, transportavam até ao campo. O garrafão de cinco litros já tinha ido logo de manhã, a acautelar a sede. Em ambos os casos, constava a petica ( mastiga antes de começar o trabalho), o almoço ( por volta das nove horas, composto de batatas, bacalhau, migas e chícharos ( feijão frade), o jantar, ao meio dia, em que não faltava o feijão cozido com bastante carne de porco e, ao final da tarde, a merenda em que os condutos abundavam para pôr em cima das fatias de pão de centeio: chouriça, farinheiro frito, um pedaço de queijo corado; de vez em quando, levava-se à boca uma azeitona para não parecer mal. Estendia-se no chão a toalha que tapava a cesta, num sítio seco e abrigado onde não se vissem formigas e cada um se sentava como podia: uns no cabo da enxada, outros numa pedra tirada de um muro, outros num casaco velho…todos se acomodavam numa circunstância que lhes era habitual. Se, de repente, vinha uma chuvada, era uma atrapalhação e corria-se para a cabana, se existisse, onde a refeição continuava e se esperava que estiasse.
Após a lavragem, era necessário agradar ( alisar e destorroar o terreno com a grade) para depois de se deixar secar, se iniciar a sementeira das batatas. Estas, compradas ou do ano anterior, já com os grelos nos “olhos”, tinham que ser manejadas com cuidado de modo a que cada bocado tivesse um grelo ou dois. Na área a semear, dividida em courelas, um homem com uma enxada e uma mulher com uma cesta cheia de batatas partidas, começavam numa ponta e acabavam na outra: ele abrindo um rego, ela colocando os pedaços de batata com espaços de dois palmos, mais ou menos. Assim sucessivamente, a terra de um rego cobria o rego anterior ficando, no final, uma sobreposição de camadas de terra de aparência agradável à vista.
Na Terça-Feira próxima já havia um pretexto para ir à Vila: comprar molhadas de couves galegas que não tivessem potra ( doença dos vegetais, caracterizada por saliências nodosas) para plantar nos regos que separavam as courelas e ter, se pegassem, fartura de caldo para a sopa e para os animais.
Quando, passadas algumas semanas, depois de ancinhada, na terra negra se começavam a descobrir as pequenas folhas verdes das batateiras era sinal de que a semente tinha sido boa e prenúncios de um bom batatal, caso não viesse uma geada tardia que o queimasse. Depois, vinha a rega, a sacha, o adubar, a cura para matar a praga dos escaravelhos. E, quando a rama começava a ficar seca, era sinal que as batatas estavam criadas e prontas para tirar.
Outra azáfama: de novo, as enxadas e as cestas: as primeiras a deixar um rasto de batatas de tamanhos diferentes que as mulheres iam apanhando separadamente: primeiro as graúdas, a seguir as da semente, as miúdas para dar aos porcos; por último, as que tinham sido cortadas pelas enxadas que nunca eram muitas que a prática aguçava o engenho. Tinham que ser consumidas com brevidade porque iam apodrecer. Como era gratificante ter uma boa colheita de batatas! Para vender e ter a casa farta, uma vez que todos os dias se gastavam e não se podia passar sem elas.
Nós, que depois da escola corríamos para o campo, íamos crescendo e acompanhando estas vivências de uma rotina anual que pensávamos que fosse para sempre… como se aquelas enxadas e cestas viessem a ser por nós utilizadas na faina das batatas de geração em geração…
Espalhados pela terra ficavam pequenos montes das hastes das batateiras que o calor do sol acabava por ressecar. Nós, a garotada irrequieta a precisar de grilos para armar as costelas (armadilha para pássaros), arredávamo-los e, com a mão em concha sobre o solo quente, um a um os tentávamos apanhar perseguindo-os no seu saltitar à medida que os íamos metendo no ralo de um regador de zinco. Foi há tanto tempo…mas as memórias de infância são tão fortes que parece que ainda sentimos as cócegas que, na mão fechada, nos faziam rir e saltar de contentamento.
Um sujeito da nossa terra, cujo nome bem lembramos, daqueles que nasceram para não terem grandes preocupações, armou-se, um ano, em comprador de batatas. Na verdade, ainda comprou umas sacas a uns vizinhos que não esperaram pelo negociante de fora. Aconteceu, porém, que o passar do tempo ou o indevido acondicionamento, fez apodrecer as batatas acarretando-lhe um prejuízo superior às suas posses. O facto foi conhecido e deu azo a comentários sobre a falta de sensatez do “falhado comerciante”.Certo dia, apareceu na aldeia um louceiro que, trocando louça por batatas, e destas já haver em quantidade, perguntou se, por ali, alguém as comprava. Ora, por brincadeira, foi-lhe indicado o referido comprador que, com os nervos à flor da pele, dissera para o inocente louceiro:
- O quê? Comprar batatas? Só faltava mais esta! Lá vem você a chatear-me com as batatas!
Ao vivo, teve mais graça porque o homem gaguejava e as palavras, sobretudo as “ batatas”, enrolavam-se-lhe na boca e não saíam à primeira…