Quando as pastagens dos lameiros tinham terminado e as cancelas deixavam de ter uso, procedia-se à preparação da terra para semear as batatas sendo a rambana e a ranconce as variedades predominantes. A primeira, arredondada e lisa cozia-se mais depressa e, não havendo cuidado, quase se esfarelava; a outra, mais alongada e dura, aguentava-se mais tempo sem apodrecer. Burros e cavalos transportavam, nas cangalhas, (armação de madeira em que se sustentava e equilibrava, metade para um lado, metade para o outro a carga das bestas) o esterco amontoado na estrumeira proveniente dos porcos, ovelhas, galinhas e coelhos…e não só…como nada era desperdiçado, também a cinza da fogueira era aproveitada para ajudar a terra dura a produzir melhor. Se o terreno era pequeno cavava-se com enxadas que a força dos braços de homens rijos erguiam no ar e, em ritmo certo, cravavam no chão revolvendo a terra. Se o lameiro tinha uma geira ( terreno que uma junta de bois podia lavrar num dia) chamava-se o lavrador que, segurando a rabiça do arado, direccionava a relha que ia rasgando o solo. Não sendo um trabalho para mulheres, a elas pertencia a tarefa de preparar as cestadas de comida que, à cabeça, transportavam até ao campo. O garrafão de cinco litros já tinha ido logo de manhã, a acautelar a sede. Em ambos os casos, constava a petica ( mastiga antes de começar o trabalho), o almoço ( por volta das nove horas, composto de batatas, bacalhau, migas e chícharos ( feijão frade), o jantar, ao meio dia, em que não faltava o feijão cozido com bastante carne de porco e, ao final da tarde, a merenda em que os condutos abundavam para pôr em cima das fatias de pão de centeio: chouriça, farinheiro frito, um pedaço de queijo corado; de vez em quando, levava-se à boca uma azeitona para não parecer mal. Estendia-se no chão a toalha que tapava a cesta, num sítio seco e abrigado onde não se vissem formigas e cada um se sentava como podia: uns no cabo da enxada, outros numa pedra tirada de um muro, outros num casaco velho…todos se acomodavam numa circunstância que lhes era habitual. Se, de repente, vinha uma chuvada, era uma atrapalhação e corria-se para a cabana, se existisse, onde a refeição continuava e se esperava que estiasse.
Após a lavragem, era necessário agradar ( alisar e destorroar o terreno com a grade) para depois de se deixar secar, se iniciar a sementeira das batatas. Estas, compradas ou do ano anterior, já com os grelos nos “olhos”, tinham que ser manejadas com cuidado de modo a que cada bocado tivesse um grelo ou dois. Na área a semear, dividida em courelas, um homem com uma enxada e uma mulher com uma cesta cheia de batatas partidas, começavam numa ponta e acabavam na outra: ele abrindo um rego, ela colocando os pedaços de batata com espaços de dois palmos, mais ou menos. Assim sucessivamente, a terra de um rego cobria o rego anterior ficando, no final, uma sobreposição de camadas de terra de aparência agradável à vista.
Na Terça-Feira próxima já havia um pretexto para ir à Vila: comprar molhadas de couves galegas que não tivessem potra ( doença dos vegetais, caracterizada por saliências nodosas) para plantar nos regos que separavam as courelas e ter, se pegassem, fartura de caldo para a sopa e para os animais.
Quando, passadas algumas semanas, depois de ancinhada, na terra negra se começavam a descobrir as pequenas folhas verdes das batateiras era sinal de que a semente tinha sido boa e prenúncios de um bom batatal, caso não viesse uma geada tardia que o queimasse. Depois, vinha a rega, a sacha, o adubar, a cura para matar a praga dos escaravelhos. E, quando a rama começava a ficar seca, era sinal que as batatas estavam criadas e prontas para tirar.
Outra azáfama: de novo, as enxadas e as cestas: as primeiras a deixar um rasto de batatas de tamanhos diferentes que as mulheres iam apanhando separadamente: primeiro as graúdas, a seguir as da semente, as miúdas para dar aos porcos; por último, as que tinham sido cortadas pelas enxadas que nunca eram muitas que a prática aguçava o engenho. Tinham que ser consumidas com brevidade porque iam apodrecer. Como era gratificante ter uma boa colheita de batatas! Para vender e ter a casa farta, uma vez que todos os dias se gastavam e não se podia passar sem elas.
Nós, que depois da escola corríamos para o campo, íamos crescendo e acompanhando estas vivências de uma rotina anual que pensávamos que fosse para sempre… como se aquelas enxadas e cestas viessem a ser por nós utilizadas na faina das batatas de geração em geração…
Espalhados pela terra ficavam pequenos montes das hastes das batateiras que o calor do sol acabava por ressecar. Nós, a garotada irrequieta a precisar de grilos para armar as costelas (armadilha para pássaros), arredávamo-los e, com a mão em concha sobre o solo quente, um a um os tentávamos apanhar perseguindo-os no seu saltitar à medida que os íamos metendo no ralo de um regador de zinco. Foi há tanto tempo…mas as memórias de infância são tão fortes que parece que ainda sentimos as cócegas que, na mão fechada, nos faziam rir e saltar de contentamento.
Um sujeito da nossa terra, cujo nome bem lembramos, daqueles que nasceram para não terem grandes preocupações, armou-se, um ano, em comprador de batatas. Na verdade, ainda comprou umas sacas a uns vizinhos que não esperaram pelo negociante de fora. Aconteceu, porém, que o passar do tempo ou o indevido acondicionamento, fez apodrecer as batatas acarretando-lhe um prejuízo superior às suas posses. O facto foi conhecido e deu azo a comentários sobre a falta de sensatez do “falhado comerciante”.Certo dia, apareceu na aldeia um louceiro que, trocando louça por batatas, e destas já haver em quantidade, perguntou se, por ali, alguém as comprava. Ora, por brincadeira, foi-lhe indicado o referido comprador que, com os nervos à flor da pele, dissera para o inocente louceiro:
- O quê? Comprar batatas? Só faltava mais esta! Lá vem você a chatear-me com as batatas!
Ao vivo, teve mais graça porque o homem gaguejava e as palavras, sobretudo as “ batatas”, enrolavam-se-lhe na boca e não saíam à primeira…
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