domingo, 23 de outubro de 2011

Os Amores - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego


Escrever sobre a infância é fazer uma análise retrospectiva contemplando vivências num emaranhado de sentimentos mergulhados num mar sem fundo, como se ainda permanecêssemos debruçados nas guardas dos poços dos lameiros da ribeira, a olhar a nossa imagem reflectida naquelas águas paradas. É um nunca mais acabar de recordações que, numa visão holística do que somos, causam a sensação de algo que se perdeu e, a muito custo, queremos reaver, como quando o pequeno chapéu de palha, atado às três pancadas, nos caía da cabeça e ficava a boiar à superfície…mas que, para suprir a falta e acalmar o desgosto, qualquer varela, à mão de semear, trazia de volta.

Nenhuma pretensão ostentamos acerca dos múltiplos significados e características do amor. Ficaremos pela existência de um vínculo emocional entre pessoas que, de acordo com o seu carácter individual, sustentará comportamentos que, sem serem nada do outro mundo, podem revelar a existência de um mundo em que o bater das asas das borboletas em nada interferiria com as leis do universo.

Assim como a Natureza se encarregava de fazer florescer na Primavera, também a idade da mocidade fazia desabrochar corpos e espíritos com as garotas e os rapazitos a deitar o cabelo e a medrar a olhos vistos. De magricelas e enfezados iam ganhando carne, de modo a aparentar formosura e força. Tudo passaria a ser diferente, no pensar e no agir: a ida à fonte, à missa, à horta, à Vila, o vestir, o pentear ( as permanentes eram quase obrigatórias), o mostrar às claras saber bordar, costurar e tricotar. Carregar sacos de batatas às costas, varejar as oliveiras mais altas, cavar num dia o que dois homens não cavavam em dois, carregar sozinho um burro ou um cavalo, rachar troncos de carvalho sem precisar de guilhos, saber fartar o rebanho quando a erva já estava rapada…eram vaidades a cultivar.

O tempo, operador de mudanças, dificilmente se compadecia em acalmar os ímpetos mais naturais no ser humano e nele se delegava uma parte da resolução do problema, com ânsia de boa sorte. Ficarem noivas antes dos vinte anos para se livrarem das bocas do povo e precaverem o amanhã era um sossego desassossegado para as moças casadoiras e um alívio para as mães.

Para trás, ficavam os bilhetes da escola, com letras certinhas, sem borrões de tinta, escritos às escondidas, entre ditados extensos e confusos e problemas do Mil Cento e Onze que obrigavam a trocar coelhos por galinhas. Mensagens lacónicas do despertar dos sentidos. Sem explicação plausível, a medo se entregavam ou se amarfanhavam no fundo da sacola, as primeiras expressões de amor que, silenciosa e inocentemente, de nós brotavam:

- Gosto de ti.

- Gosto de ti.

Como as décadas alteram tudo! O que fomos afunda-se no que somos, o que sentimos tem outro sentir e até a inocência questionamos por pensarmos que a intimidade revelada pode manchar a pureza de sentimentos. Mesmo assim, sabe bem reler aquelas três palavras, pensá-las baixinho e, com a timidez da infância, querer dizê-las a alguém…

A sabedoria popular dizia que, quem fora da terra fosse casar, ou ia ser enganado ou ia enganar. Porém, havia de ser a terra a origem de amores e desamores, de casamentos feitos e desfeitos, de consentimentos familiares e zangas para toda a vida, de arrependimentos, vinganças e mortes. Para quem não tinha onde cair morto, nenhum dilema existia, tudo se resolvia juntando a fome com a vontade de comer e o amor e uma cabana estavam justificados. Mas para quem possuía dois palmos de terra, duas aspirações norteavam o destino dos seus, tentando desmentir o velho ditado de que “ o casamento é uma carta fechada”: arranjar alguém que também tivesse terras ou encontrar quem das terras os livrasse para sempre. Ter quintal ali à mão com água de nascente para ter renovo fresco, pinhal com resina, lenha, pinhas e mato, terras de semeadura e pastos para o gado, oliveiras e uns cordões de videiras eram heranças futuras que enriqueciam o presente, descurando-se, em alguns casos, diferenças de idade e laços de parentesco esquecidos pelo arrancar de marcos que aumentavam courelas e prestígio.

Mais ousado ainda seria o propósito de um casamento - passaporte que abrisse fronteiras para outros viveres, que substituísse as cestas de verga por malinhas de mão e arrumasse de vez com as enxadas.
As “cartas de amor” davam um jeitão! Viessem do Brasil, da África, da América, do Canadá ou mesmo de Lisboa. Fosse para casar de verdade, na igreja da aldeia, ou por procuração, com o pai a fingir de noivo, cartas para cá e para lá eram prenúncio de felicidade. Dava gosto, ver a avidez com que as raparigas agarravam essas cartas, na Taberna do Sr. Pereira, à hora de ler o Correio, sem se aperceberem do desgosto de quem as não tinha.

Dizia-se não haver panela sem testo, mas aconteceu, em ambos os sexos, quem ficasse por casar: por esquisitice, para tal não ter sido talhado ou porque Deus assim o quisera. Algumas solteironas ainda se desforraram no tempo do minério que atraiu à aldeia homens que ganhavam bem. Outras, cada vez mais fora de prazo, iam inventando desculpas esfarrapadas para a sua castidade forçada, acabando por rematar que tinham tido sorte por nunca terem aturado homem nenhum. Conformadas ou não, eram frequentadoras assíduas dos actos religiosos e encabeçavam a lista das chamadas beatas falsas, com a postura certa de quem muito tinha a penitenciar na convicção de que, em pensamento, também se podia pecar.

Acerca dos homens que não casaram, algumas peripécias ouvíamos: de um que, por falta de altura e jeito, não era capaz de aparelhar o burro e que, para o montar, tinha de o meter num valado, sem ser visto, de nada lhe valendo ter-se pavoneado pelas aldeias próximas; de outro, alcunhado de Xico Burro que, dizendo-se o homem mais rico da terra, vivia o amor solapado de casar com uma professora e fazia questão de ser tratado por milionário. Divertido mesmo era o caso do Tomás. Volta e meia, ou por falta de assunto ou por vontade de brejeirice, à hora das merendas, lá vinha à baila o fracasso amoroso que a sós vivera. Embeiçado por uma jovem escorreita, a quem nunca poderia encher as medidas, escondia-se atrás das oliveiras do Malvar para lhe falar dos seus intentos, da melhor forma que sabia e a gaguez lhe permitia:

- Inda elas bei cheitossa…ma figeste-te um coilãocito!

- À coilãocito…coilãocito…

Era risada geral, prolongada pela repetição propositada de quem sabia que fazer rir era uma mestria. Achávamos tanta graça que, volvidos tantos anos, não nos atrevemos a modificar o dito para não lhe tirar a graça pois, para bons entendedores, é quanto basta. Acabou por encontrar parceira, já a destempo. Velha, trôpega e sonsa a quem, segundo ele próprio dizia, por mais que se esforçasse, não conseguia fazer um filho.

Solteiro até morrer ficou o ti Jaquim! Avesso a qualquer tipo de mudança, limitava-se ao estritamente necessário para viver como se, deliberadamente, quisesse parar no tempo ou percorrê-lo de marcha atrás. Cortava na casaca de quem, para melhorar as condições de vida, comprava camas de ferro, mesas e cadeiras, armários e outras cangalhadas sem préstimo.

- P’ra que “querendes” o guarda-livros? Perguntava categórico, em casa de familiares, olhando-se no espelho de um guarda-vestidos que, por não caber nos quartos, enfeitava a sala.

- Se juntassem o dinheiro para comprar terras é que tinham juízo! É a única coisa que tem valor!

- De que adianta pôr os filhos a estudar? Alguém deixa os estudos como herança?

Acendia o lume para se aquecer e assava nas brasas bocados de bacalhau ou chouriça enrolada numa folha de couve para aconchegar o estômago que ficaria composto com umas copadas de vinho. Com as uvas da Ladeira e as azeitonas do Cabo enchia as pipas e os potes tendo com que alumiar a goela e a candeia. Era na adega que passava grande parte do tempo, já que de afazeres e compromissos se sentia liberto e disponível para a cavaqueira com quem por lá passasse:

- Vai uma pinga?

- Ia mesmo a calhar!

E calhava cada vez melhor, à medida que iam escorropichando os copos para os encher de novo debaixo da torneira que, mesmo fechada, teimosamente pingava.

Às vezes, alguém interrompia estas euforias etílicas, mas nem Baco se importava. Era a Carma Plainas que, de tempos a tempos, visitava a aldeia e impunha um desrespeito que apenas o ti Jaquim apreciava. Retemos, marcadamente, a imagem dessa mulher, vinda não sabíamos de onde, por não termos mão no que a memória armazena: grande, escanzelada, olheiras fundas, cabelos negros emaranhados, roupa de cidade amarrotada, saltos altos tortos e esfolados e beiços espintaçados de vermelho, a cambalear e a falar sozinha, da taberna para o ti Jaquim!

Amparavam-se para atravessar a rua, para entrar no curral da burra, para subir para a tarimba. Não paravam de se amparar…e mais não sabíamos. A nossa curiosidade tinha limites, o escuro era impenetrável mesmo com a porta escancarada. A burra, juramos a pés juntos, nunca revelou nada a ninguém.

De ideias avançadas era a rapariga que vivia perto da capela de Santo António. Fosse pela influência do Santo, fosse pelo sangue quente que lhe fervia nas veias, desinquietava forasteiros e residentes. Sem ser linda de morrer nem feia de meter medo, era bem- feita de corpo, agradável no trato, sabia cativar as pessoas. A falar, ninguém a levava presa. Gostávamos dela. Quem mal não tem, mal não pensa, independentemente de encantos ocultos que nos passavam ao lado juntamente com tudo o mais que as más- línguas diziam. Quem vivia em constante sobressalto era um resineiro das bandas de Mangualde que, ao longo do ano, passava para marcar e sangrar os pinheiros, vazar os caçoilos da resina, substituir os que se iam partindo ou, simplesmente, para marcar presença nos pinhais e posse no amor. Tranquilizava-o o facto de ter, na aldeia, um amigo de confiança com quem não tinha segredos, a quem insistentemente rogava, antes de se ir embora:

- Não tires os olhos de cima dela! Tem a certeza de que é só minha e tua! E de mais ninguém!

Os rapazolas da aldeia, inexperientes na arte de resinar e noutras artes, andavam rua acima rua abaixo, rondavam a capela, sentavam-se debaixo do freixo, numa agitação crescente e descontrolada, desencadeada pela seiva da juventude. As mulheres, danadas, diziam que era uma vergonha; os homens, malandros, achavam que era uma boa recruta. E nós, que íamos deixando de ser crianças, já tínhamos o devido entendimento para não meter o bedelho.

Com as asas da infância, sobrevoando partes recônditas da alma das gentes da nossa aldeia, quisemos descrever atitudes, emoções, decepções e talvez amores, conscientes da subjectividade em que qualquer pensamento escrito pode incorrer.



sábado, 22 de outubro de 2011

    De chorar, não nos lembramos
    Isso se perdeu no tempo.
    Mas perdura o sentido
    Do primeiro Sacramento.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Doenças - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego


Nesses tempos em que o tempo se media mais pela luz do sol do que pelos relógios escassos que mais serviam para enfeitar, havia pouco vagar para estar doente. A prevenção das doenças fazia-se intuitivamente e o mais importante era não ter fastio e dar dois ou três arrotos depois da refeição para haver a certeza de que estava a fazer bom proveito. A variedade de alimentos que a terra dura produzia encarregava-se de fortalecer o corpo que, pelas energias dispendidas, se negava a acumular gorduras. A comida requentada, fosse soro, batatas, caldo, feijão, favas ou grão, mesmo à ceia, se digeria e, se durante a noite causasse alguma azia, não era coisa que tirasse o sono a corpos moídos. O dizer presunçoso de um cavador afirmava que tinha um estômago tão rijo que, se as comesse, até pedras desfazia…

Não obstante, quando os males apareciam, porque ninguém era de ferro, as interpelações surgiam imbuídas de enigmas profanos e sagrados levando à ponderação sobre a finitude de quem padecia.

Quase sempre sem explicações plausíveis, ocorriam mazelas que a sabedoria popular dos mais velhos se encarregava de tratar. As dores nas cruzes, o reumático, a ciática ou a espinhela caída eram fruto do tempo ou de mau jeito que uns panos quentes ou o dependurar numa porta acabavam por sanar. Os resfriados, por norma, eram causados pela frieza das águas dos poços, nas regas de madrugada ou pela chuva enxugada na roupa das costas quando não havia cabana que servisse de abrigo. Nada de monta, que uma caneca de aguardente e uma suadela debaixo do cobertor de papa, numa noite, não resolvesse. As constipações, no longo Inverno, com tosse e espirros, eram mais más de aturar. O ranho no nariz obrigava a andar sempre com lenço no bolso, enrodilhado e pegajoso, sem ter ponta por onde lhe pegar. Os homens ajeitavam-se a tapar uma narina e a expelir, para o chão, as secreções. Mas, o avental das mulheres, se bem que aparasse os pingos do nariz, não contemplava uma constipação a sério. O mais incomodativo era, na verdade, durante a missa de Domingo quando, a meio do sermão ou a erguer a Deus, os ataques de tosse afluíam e se propagavam sem parar. Os olhares desviados, concentrados nos rostos congestionados e envergonhados, geravam mal-estar a ponto de, embora contrariada por perder parte da missa, uma velhota que sofria de asma, volta e meia ter que sair para o adro para tossir e esvaziar os canais. Quando a tosse abrandava, e retomava o lugar, sussurrava para ambos os lados, no banco corrido e apertado, o possível motivo do achaque, as colheres de mel que já tinha tomado no chá de casca de cebola com aguardente e tudo e que, na cama, durante a noite, ainda era pior, com febre e suores frios.

As dores de cabeça e de barriga eram mais propícias às mulheres que, para além do incómodo, sabiam que o mal e o bem à face vem. Deitavam mão aos taleigos onde guardavam as ervas milagrosas, secas à sombra durante o Verão: as barbas de milho, a tília, as flores de sabugueiro, a erva cidreira, a erva de São Roberto, os poejos, a hortelã, os pés de cereja e aos pachos ( panos embebidos num líquido) que faziam sempre bem. Da comichão feminina e líquidos amarelados e mal cheirosos a ponto de se ter de usar calças (cuecas) todos os dias, só em segredo se faziam queixas e se aconselhava a lavagem, por baixo, com água fervida com malvas que em qualquer canto se apanhavam. Fosse pelas qualidades terapêuticas da planta, fosse pela limpeza a fundo, o ardume ia passando e reaparecendo e cada um sabia de si e Deus sabia de todos. Recomendava-se, no entanto, usar meias nos dias do período menstrual, mesmo em pleno Verão, pois convinha haver resguardo. Ir ao médico estava fora de questão. Era o que mais faltava! Mostrar as partes íntimas a um homem se nem os maridos nunca as tinham visto nuas! Casos houve em que a honradez degenerou em mal ruim e nem os médicos da Guarda e de Coimbra lhes atalharam o mal.

As dores de dentes sobressaíam pelo inchaço da face e não havia bochecho de aguardente que as detivesse. O lenço da cabeça, nas mulheres, atado atrás do pescoço, sempre aconchegava e disfarçava um pouco, mas atrapalhava o falar. Adiava-se o arrancar, à espera que passasse, não pela falta dos dentes, mas pela dor, a sangue frio. Na aldeia, ninguém se atrevia a isso e o dentista, em Celorico da Beira, tinha uma cadeira, alicates e a mulher que, agarrando quem se sentava, fazia de anestesia. Mais importante que ter muitos dentes, era ter em que dar ao dente.

Os furúnculos, mais frequentes nos homens, apareciam no pescoço, nas costas e nádegas, para não falar das virilhas, com sinais evidentes de infecção e sabíamos serem dolorosos por ouvirmos dizer, se bem que dos carbúnculos ( aglomerados de furúnculos), dissessem não se desejar ao pior inimigo. Era feio de ver, aquele montito de carne avermelhada coberto de pus que, quase sempre, tinha que ser espremido ou lancetado e deixava cicatriz.

As feridas provocadas por espinhos, queimaduras, mordeduras de cães ou infecções ligeiras, lavadas com sabão azul e desinfectadas com álcool ou vinagre depressa criavam crosta, com a ajuda da sugestão de que o que ardia curava. A não ser as da Ti Maria da Luz que, besuntadas com petróleo e enfaixadas em jornal, pioravam a olhos vistos. A culpa foi da panela de ferro que fervia ao lume que, por ter só duas pernas e meia, lhe havia de causar tais trabalhos quando se virou e lhe queimou as mãos.

Para as nódoas negras provocadas pelo sangue pisado, o remédio vivia dentro de um frasco e suscitava a nossa apreensão sempre que a senhora Maria Gomes se prontificava a fazer o curativo a quem dele necessitasse. Cuidadosamente, colocava uma sanguessuga sobre a parte arroxeada e esperava que a bicha inchasse e a pele clareasse. Nós, a garotada que acudia às soleiras das portas, balcões de granito e outros sítios onde houvesse gente, dava fé de tudo. Olhávamos, de boca aberta, sentíamos arrepios e encolhíamo-nos a desejar que nunca, em parte alguma do nosso corpo, nenhum ser vivo nos sugasse. Nessa idade, em que só a dor física existia, não poderíamos sequer imaginar que havia também as dores da alma e que esta podia ser mordida e sugada, esfrangalhada, a verter o sangue que não tinha.

Ainda bem que, de tempos a tempos, passava pela aldeia aquele homem de saco às costas, a apregoar “ quem merca as bichas”! Na ribeira também as havia, mas deviam ser preguiçosas ou ter outro defeito qualquer pois, dizia-se, utilizá-las para o efeito, não adiantava nada.

Casos mais graves, como hérnias, apendicites, úlceras no estômago que faziam vomitar borras de café, surtos de tifo, ataques repentinos ou aqueles casos de se cair redondo no chão, iam parar ao Hospital de Celorico da Beira ou da Guarda. A notícia espalhava-se e a obrigação de visitar os enfermos fazia largar os afazeres. Como não se podia aparecer na hora da visita com as mãos a abanar, compravam-se bananas e bolacha maria que cobriam o tampo da mesinha de cabeceira do quarto do Hospital. Algumas vezes nos levaram. Nos corredores, o silêncio impunha-se em cartazes com dedos indicadores colados a bocas fechadas, portas abertas deixavam ver camas alinhadas e cabeças despenteadas.

- Se procuram alguém da Jejua, é ali.

Não gostávamos, já ninguém vivia na Jejua, mas sabíamos que a gente de Celorico nunca nos perdoaria que o nome da nossa pequena aldeia começasse por Vila.

Refinava o cheiro estranho que as nossas narinas desconheciam. A cor branca dominava tudo, como os nevões de Inverno: as paredes, as portas, as camas, os lençóis, as colchas, as enfermeiras e até os rostos dos doentes nos pareciam esbranquiçados…A única pincelada colorida que deveras prendia o nosso olhar, eram os vários verdes das bananas, algumas já amarelas e com pintas castanhas e as cores dos pacotes cilíndricos das bolachas. De nada mais nos lembramos a não ser de uma voz alquebrada a dizer:

- “Dêem-nas às crianças, acabam por se estragar”…

A fruta variada que comíamos, maçãs, peras, ameixas, figos, pêssegos, cerejas, amoras, morangos, uvas, melão e melancia, não saciava a nossa fome de bananas que, por serem compradas, rareavam como as bolachas. Constatamos depois, com o passar do tempo, que há fomes más de passar e, ainda hoje, meio século volvido, as bananas que comemos ou não queremos comer se assemelham aos desejos adiados que nunca mais são satisfeitos…

A pequenada foi corrida a eito com surtos de sarampo e varicela que, por se pensarem só à flor da pele e inevitáveis nessa idade, não davam cuidados de maior. No primeiro caso, a vermelhidão do corpo era tapada com um pano vermelho e metiam-nos na cama, ao escuro, durante alguns dias. A febre pouco incomodava, mas era um suplício permanecer assim horas a fio! Às escapadelas, sem ninguém em casa, saíamos da cama e espreitávamos pela janela até sentirmos o ruído dos gonzos da porta…

A varicela, com aquelas erupções avermelhadas, pintalgadas com mercurocromo, dava-nos um ar apalhaçado mas fazia uma coceira de morrer! Quanto mais nos diziam que coçar deixava marcas, maior era a comichão…

O trasorelho ( papeira), constituía, nos rapazes, um problema sério que, caso descesse, podia comprometer o desempenho sexual na vida adulta e obstar à descendência…

Aparentemente inofensivas, eram as lombrigas que facilmente sucumbiam a umas goladas de chá de erva dos burros que cresciam junto aos muros; assim como as diarreias que rapidamente eram controladas com umas colheres de farinha dissolvidas em água com um pouco de açúcar que bebíamos com agrado.

Aos piolhos e camadas de lêndeas ninguém escapou. O primeiro alerta vinha da escola, quando a mão direita escrevia e a esquerda enfiava os dedos na nuca, sítio onde os parasitas achavam melhor cama. O pente duplo, impotente para retirar a criação, deixava que fazer às mães que tinham que catar os filhos um a um. Mas nós achávamos graça, riamo-nos e virávamos a cabeça, de olhos fechados, no colo das mães.

Como vai longe esse tempo!

Os piolhos voaram, não gostam de cabelos brancos…mas continuamos a sentir, junto à raiz dos nossos cabelos, as mãos mais meigas da nossa vida…

Atrevemo-nos a chamar doença às tareias que algumas mulheres levavam e as obrigavam a ficar de cama, com cabeças partidas, cabelos ensopados em sangue e nódoas negras pelo corpo. Ouvíamos na rua o espalhafato e os gritos resultantes de vinho e maldade. Esperta foi a mulher de um tal fulano que, já entrado na idade e só pele e osso, mas viciado em aguardente e mau de aturar, caiu à cama. Ali permaneceu bastante tempo, sem nunca lhe faltar a garrafa à cabeceira. Certa vez, a mulher, ao dar os pêsames a outra que acabava de ficar viúva, teve este desabafo:

- “Você já está descansada, já o lá tem…agora eu”…

De outras enfermidades encobertas algumas pessoas se julgavam acometidas como justificação dos azares da vida. Perdida a esperança nas mezinhas caseiras, por de dores físicas não ser o caso, havia que atalhar o mau olhado, os males de inveja ou o quebranto. Preparavam-se os defumadouros com algumas ervas aromáticas, sempre em número ímpar:

. Cinco grãos de sal.

. Cinco bocadinhos de alecrim.

. Cinco pingos de azeite.

Espalhava-se tudo sobre brasas, para fazer fumo. Em seguida, benziam-se e diziam a reza apropriada:

“ Eu te defumo para o mal te tirar e Nossa Senhora fumou o seu amado Filho para bem cheirar. Pai Nosso e Avé Maria.”

“O alecrim é bento, o alecrim é santo. Assim como é bento e santo, tira as pragas da inveja, agouro e quebranto. Dois o deram, três o tiraram e são as três pessoas da Santíssima Trindade. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Pai Nosso e Avé Maria.”

Em recolhimento, à luz ténue da candeia, as mulheres iam repetindo as rezas a olhar as brasas que se iam transformando em cinza e o vazio do fumo que já tinha desaparecido.

Poderemos desconhecer em nós marcas doentias vindas da infância que, de algum modo, tenham condicionado os nossos comportamentos ao longo da vida. Do que não duvidaremos jamais é desta necessidade premente que, de corpo e alma, nos faz recuar no tempo, reviver tudo e querer voltar a esse mundo maravilhoso da infância a que o tempo nos fechou as portas.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Rio Mondego - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

Águas do Rio Mondego
Passam a vida a correr
São como o tempo da infância
Que nada pode deter...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Brincadeiras de infância - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego


No tempo da nossa infância, de acordo com os escrúpulos da época, as brincadeiras eram diferenciadas e vividas no masculino e no feminino. Embora se brincasse em casa nos dias chuvosos de Inverno, a embalar bonecas que não fechavam os olhos, às alunas e professoras que fingiam dar reguadas, a preparar merendas com pão e condutos que estivessem à mão, era na rua que dávamos asas à imaginação e em qualquer recanto ou balcão de granito improvisávamos casinhas onde as pedras faziam de móveis e os cacos de barro utensílios domésticos. Dos buracos das paredes arrancávamos capilos, do chão apanhávamos serralha, beldroegas e dentes de leão que, misturados com terra e água, depois de tudo bem mexido, chamávamos comida como se de um manjar se tratasse. As personagens, definidas de acordo com a idade e capacidade de liderança, reduziam-se a “mães” e “filhas” omitindo-se a ausência da figura paterna que, numa justificação simplista, poderemos atribuir à ausência diurna do masculino na vida doméstica. Havia ainda um plural diversificado de bonecas: as matrafonas com corpos de peúgas cheias de trapos, cabelos de lã e olhos de botões, as feitas de giesta com cabeça de bogalho( fruto do carvalho) e as de papelão, compradas nas feiras, de lábios pintados e olhos azuis…estas, meninas grandes em miniatura, por terem custado dinheiro e terem a faculdade de se sentarem, raramente integravam as nossas “famílias”permanecendo quietas, de braços abertos, a enfeitar arcas ou cadeiras…não eram para brincar, não se fosse esfolar o rosado das faces.

De forma mais ou menos cíclica, os vários entretenimentos iam tendo lugar no decorrer do ano. Nos dias de calor, à sombra das casas ou debaixo de uma árvore, jogava-se ao lencinho, à cabra-cega, ao anelzinho, aos quatro cantinhos, ao bom- barqueiro, às pedrinhas trazidas do rio e à péla na altura da Páscoa. Ao tempo frio eram destinados jogos mais movimentados como a macaca, as escondidas, a apanhada, saltar a corda…e quando a liberdade de movimento superava qualquer organização lúdica, corríamos pelas ruas, de braços abertos empurradas pelo vento …na ilusão crescente de podermos voar.
A energia dos rapazes era dispendida a jogar à bola, independentemente da época do ano. Surgia sempre uma bola de trapos que, com a mínima organização futebolística, suscitava uma correria para a pontapear e fazer passar por entre duas pedras com alguns palavrões à mistura. Era uma sorte a textura da bola para os pés descalços...
Obedecendo a um imperativo desconhecido, chegava o tempo de correr nas andas, jogar o arco, a chôna, a malha, o pião. Os mais habilidosos faziam as baraças com linhas de algodão tiradas dos açafates das mães. Vários fios esticados e torcidos nas extremidades, em sentido contrário, transformavam-se na guita mágica que, enrolada com mestria no pião, o fazia rodar e rodopiar no terreiro. E nós, as meninas “mães” e “filhas”, íamo-nos aproximando sem tirar os olhos dos piões às voltas, à espera que um dos rapazes colocasse na nossa mão um deles em movimento para sentirmos aquela sensação estremecida que nos percorria o corpo a que, a morrer de riso, chamávamos cócegas.

Éramos fazedores de brinquedos. Da casca dos pinheiros saíam carrinhos de bois, da madeira dos carvalhos nasciam cancelas, picotas e arados, dos ramos de amieiro surgiam flautas, de um galho qualquer se faziam fisgas, de uns troncos unidos se improvisava um carro…com ramos de árvores se ajeitava um tecto, de umas pernadas de giesta uma vassoura, de pedaços de barro surgiam pratos que o sol nunca cozia, de sacos grávidos de trapos nasciam bonecas e mudas de roupa, com pinhões e linhas fazíamos colares, dois pés de cerejas unidos transformávamos em brincos e de ramos de malmequeres do campo armávamos coroas…

Porém, era nas brincadeiras sem nome que soltávamos a gana: fechava-se a cabra juntamente com as galinhas, atavam-se latas às caudas dos cães, puxavam-se os rabos dos burros, roubavam-se chouriças do fumeiro, saltávamos sem parar nas camas de giestas e palha feitas de novo nos currais das ovelhas, apanhávamos boleia nos carros de bois sem o lavrador se aperceber, corríamos à volta dos poços até ficarmos tontos, bebíamos água das chuvas nas covas de barro, fazíamos soveiro ( estragos com os pés) nas sementeiras, apanhávamos flores no adro da igreja, derretíamos a neve com líquido amarelado expelido pelo corpo. Evidentemente, ralhavam connosco. Mas, porque estas proezas nos estavam na massa do sangue, alternavam com repreensões em que sempre a palavra malhadiços vinha à baila.
Assim fomos crescendo, adquirindo livre e espontaneamente, noção de espaço, lateralidade, equilíbrio, coordenação motora, autonomia, segurança e outras que, num contexto de socialização de rua de aldeia, decerto nos fizeram felizes e contribuíram positivamente para o nosso desenvolvimento pessoal.

Brincámos, brincámos muito. Arranhámos as mãos, golpeámos dedos, ferimos os joelhos, fizemos galos na cabeça, entalámos dedos nas portas … imaginámos e inventámos tanto… como se pressentíssemos que, depois da infância, as brincadeiras seriam condicionadas pelo tempo, pela responsabilidade e circunstâncias e por nós próprios… e tivéssemos de imaginar e inventar outras que ludificassem a vida.



domingo, 16 de janeiro de 2011

Fonte do Forno - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

                                         Caída no esquecimento
                                         Ninguém lhe dá importância
                                         Tendo ela saciado
                                         A sede da nossa infância.