segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Vila Boa do Mondego - As Janeiras - Anos 50/60

O primeiro dia do ano, quase sempre massacrado pelo rigor do Inverno que nas aldeias serranas se fazia sentir, tinha, para nós, um significado especial: ao anoitecer, formávamos um pequeno grupo e, segurando na mão um saquito de pano, alguns feitos de retalhos, íamos de porta em porta, cantando as Janeiras. É claro que não surpreendíamos ninguém porque, para além do barulho dos tamancos, ( calçado grosseiro com a base de madeira onde se pregavam brochas (pregos curtos de cabeça larga e chata) e das tarocas ( tamancos para meninas imitando sandálias) nas pedras da calçada, rua abaixo rua acima, sem sabermos por onde começar, havia a algazarra própria do grupo que, sem orientação nem ensaio prévio, mal sabia conter tamanha agitação. Por fim, depois de muitas tentativas e risadas, lá começávamos a cantar as mesmas quadras de sempre:

- Janeiras pedimos
Sacos trazemos
Se no-las derem
Bem as comemos.

- Esta casa é bem alta
Forrada de papelão
O senhor que nela mora
É um grande cidadão.

- Levante-se lá minha senhora
Dessa cadeira de cortiça
Venha-nos dar a Janeira
Ou de carne ou de chouriça.

Ás portas abertas ou encostadas, ia aparecendo alguém, depois de esgotado o nosso repertório que, a bem dizer, era reduzido. Os nossos sacos aceitavam tudo: figos secos, nozes, tostões… mas, de carne ou de chouriças, não há memórias…
Se, por acaso, de alguma casa nada recebíamos, isso em nada afectava a nossa boa disposição. Com mais força e graça entoávamos a quadra adequada:

- Esta casa é bem alta
Forrada de papelão
Venha o vento lá da Serra
Atire esta casa ao chão!

É evidente que as risadas estridentes, provocadas por esta rima, compensavam largamente a Janeira que não tínhamos recebido.
Para que não nos afastássemos muito, porque o recolher se guiava pela escuridão, cada grupo abrangia as ruas mais próximas das suas casas. O certo é que em toda a aldeia se sentia, naquele remanso do dia, o pulsar de sangue novo, a alegria espontânea das crianças que, dum gesto tão simples, extraíam tamanha felicidade…adoçada, no final, quando os tostões eram trocados por rebuçados na Taberna mais próxima. Como cada um custava meio tostão, ainda calhavam uns quantos! Eram pequenos, embrulhados num papel fininho, de cores diversas que davam colorido ao frasco grande em cima do balcão. O taberneiro tirava-os aos punhados, ia-os contando e separando…e nós,atentos, até que a contagem parasse e os excedentes voltassem ao frasco, seguidos do nosso olhar. Feita a transacção, cada um segurava o seu cartucho, guardando para mais tarde o outro conteúdo do saco.Em primeiro lugar estavam os rebuçados que começávamos a trincar um a um... e, quando já segurávamos na mão os poucos que restavam, esses eram demoradamente chupados, para durarem mais tempo...e duraram tanto tempo que, mais de cinquenta anos depois, ainda sentimos na boca o doce inesquecível dos rebuçados de meio tostão!