Situava-se numa das saídas da aldeia no caminho que, mais directamente, levava às Ladeiras erguendo-se, do lado esquerdo do caminho, sobre uma rocha coberta de saibro. Uma cruz grande, de pontas arredondadas, assentava num pedestal que, ninguém sabia quando, houvera sido arrancada de algum penedo das redondezas para ali permanecer como mensagem divina. O acesso era escorregadio, embora facilitado por alguns carvalhos rasteiros a cujos ramos nos agarrávamos quando participávamos nas novenas, a convite de alguém, no cumprimento de uma promessa. Como era indispensável a presença de nove pessoas tornava-se fácil reunir oito crianças para conseguir o objectivo. Para nós era divertido dar as nove voltas, a subir e a descer com a ideia fixa nos rebuçados ou figos secos que, no final, nos eram distribuídos. Outras vezes, quando por ali brincávamos, numa traquinice mais ousada, subíamos para a pedra de base e, para não cairmos, abraçávamos a cruz que, no decorrer de séculos, outro contacto humano não deve ter tido além destes e outros bracinhos frágeis.
domingo, 31 de maio de 2009
VILA BOA DO MONDEGO -A ESCOLA -Finais dos anos cinquenta
O edifício escolar não obedecia a nenhum plano de construção. Funcionava numa sala vulgar com quatro janelas e uma porta que tinha na parte superior um suporte de madeira pronto para hastear a Bandeira Nacional que não nos lembramos de ter visto. No interior, várias carteiras de madeira maciça, uma secretária, uma cadeira, dois quadros pretos, os mapas de Portugal Continental, Portugal Insular e Ultramarino e uma caixa de madeira contendo os sólidos geométricos dos quais a esfera, por ser tão redondinha, captava a nossa atenção e todos facilmente identificavam.
Era um local frio, desprovido de qualquer conforto nos dias de Invernos duros. Como aquecimento havia uma braseira que se ia enchendo e renovando de brasas recolhidas nas fogueiras das casas vizinhas. As duas escalfetas (braseiro em forma de caixa), compradas na feira de Trancoso, eram invejadas pois apenas aqueciam os pés dos respectivos donos. O frio nas mãos suportava-se de bom grado porque tê-las quentes era sinal de erros ortográficos, esquecimento de alguma Serra entre o Sabor e o Douro, confusão com as linhas do caminho de ferro de Angola e Moçambique, as Campanhas do Gungunhana ou a falta de alguma das conjunções adversativas. Alguns alunos faltavam à escola pelo rigor exigido em relação à aquisição de conhecimentos ou porque, no caso dos rapazes, eram precisos para guardar os rebanhos. Mas, os que persistiam e tinham a sorte de ter pais empenhados, obtiveram ensinamentos para a vida inteira.
Escrever na ardósia, que às vezes se apagava com a manga do casaco, ou com a caneta de aparo a molhar no tinteiro, em papel de vinte e cinco linhas, nem sempre era tarefa fácil perante a responsabilidade que isso nos exigia. Mesmo assim, e com todos os condicionalismos impostos, gostávamos do convívio, das brincadeiras e tínhamos muita vontade de rir porque sabíamos que não era prudente fazê-lo…
VILA BOA DO MONDEGO -Descrição Física -A CAPELA DE SANTO ANTÓNIO -anos 50
Situada no centro da aldeia em honra do Santo do mesmo nome não teve lugar de destaque nestes tempos que descrevemos nem sequer a Festa se celebrava todos os anos, no mês de Agosto, como pertencia. O Santo permanecia fechado a maior parte do ano atento ou indiferente às brincadeiras das crianças que, no alpendre da Capela, se abrigavam da chuva e do calor, nos intervalos da escola e às conversas dos homens que, em horas de lazer, conversavam sentados nos bancos de pedra ali existentes. Porém, se os mordomos se empenhavam e a Festa se realizava era uma alegria para todos e, decerto, para o Santo também. O programa era diversificado e preenchia o dia inteiro prolongando-se pela noite: havia missa, procissão com o andor primorosamente enfeitado, foguetes, baile com música de concertina, arrematação de ofertas e romaria. Esta era, com efeito, a parte mais divertida graças à participação dos pastores da aldeia e quintas das proximidades que caprichavam na ornamentação dos chifres das ovelhas e carneiros. Era um corrupio em volta da capela e o gado, que não tinha sido ensaiado, não se enganava nas voltas ou não soubesse o pastor como devia actuar.
Nos restantes dias do ano apenas se ouvia o toque fraquinho da sineta para convidar à reza do terço ou à catequese.
Contudo, não deixaremos que permaneça a ideia da ausência de movimento nas imediações da Capela. O Largo de Santo António, com o secular freixo ali ao lado, era centro de passagem, paragem e conversa. E, porque a escola era mesmo ali, mais vida ainda se fazia sentir.
VILA BOA DO MONDEGO- A IGREJA MATRIZ-Anos 50
Construída em granito,com o seu campanário a proteger o pesado sino de bronze, era circundada pelo adro onde cresciam alecrins, buxos, lilases, oliveiras, roseiras e outras plantas. Esporadicamente, alguém tinha o cuidado de o pretender ajardinar, mas a natureza do solo a isso não se prestava e deixava de constituir uma preocupação.
O interior da igreja era acolhedor. A imagem de S. Salvador, que muita gente desconhecia ser o Padroeiro da localidade, mantinha-se em lugar de destaque sobre o altar-mor que, nesta data, se encontrava fixo e fazia parte do todo arquitectónico que decorava a parede frontal. A meio desta, ocultado por uma cortina de seda, ficava o Sacrário que, quando aberto pelo sacerdote, inspirava um sentimento de veneração que a todos fazia baixar a cabeça, em adoração. Os dourados proliferavam fazendo realçar, ao fundo, uma pintura azul, ponteada de estrelinhas amarelas, como se de um pedaço de céu se tratasse. Os vasos de cobre, de diferentes tamanhos, ostentavam sempre flores naturais muitas vezes colhidas no campo. Dava gosto vê-los a brilhar depois de areados e puxado o lustro com um pano! Os castiçais, também dourados, suportavam velas de cera introduzidas numa vela grande artificial, do próprio castiçal. Ora, acontecia que, por vezes, a vela verdadeira chegava ao fim e se apagava no decorrer da missa ou outro acto litúrgico. Lá ia o sacristão proceder à devida reposição seguido dos olhares de todos os presentes que, por momentos, desligavam da concentração das frases em latim que, recitadas de cor, não compreendiam.
A parte da celebração, reservada ao padre e ao sacristão, estava separada dos paroquianos por um arco de granito que, durante muitos anos, se manteve pintado de branco, até que o pároco, no âmbito de uma pequena remodelação, entendeu por bem mandar retirar a tinta e restituir a nudez inicial da pedra o que não foi do agrado de todos. Mais quatro altares, do lado direito o de Nossa Senhora de Fátima e o da Senhora do Rosário e do lado esquerdo um com o Cristo Crucificado e outro com o Sagrado Coração de Jesus, não esquecendo a imagem pequenina do Menino Jesus que, do alto da sua mísula, levantava o bracinho e a todos sorria com ar benigno, contribuíam para estabelecer o ambiente sacro deste lugar de culto.
A imagem mais recente, de São José com o Menino ao colo, foi encontrada na Sacristia sem ninguém saber da sua proveniência. A notícia depressa se espalhou, mas antes de se crer em milagre já corriam rumores de quem a lá tinha colocado para pagar alguma promessa ou simplesmente aumentar o património religioso.
Do lado esquerdo, saliente da parede, o púlpito ajudava somente na decoração pois não consta que alguma vez tivesse sido utilizado para pregações. Por cima da entrada principal da igreja, sobre o guarda-vento, localizava-se o Coro protegido por uma grade de madeira onde os homens se alinhavam e encostavam para assistir à missa.
A Pia Baptismal, logo à entrada, detendo uma pintura representando o baptismo de Cristo no rio Jordão, acolheu-nos a todos ainda de tenra idade, porque havia a preocupação de não retardar o Baptismo não fosse acontecer alguma fatalidade.
O Confessionário, embora apenas uma vez no ano funcionasse em pleno, marcava o seu lugar e lembrava que estava ali apto a cumprir a sua missão.
O mobiliário, propriamente dito, a custo se mantinha alinhado dos dois lados da coxia porque a madeira estava velha e empenada com o passar dos anos. Havia ainda, a título pessoal, uns três genuflexórios (estrados com encosto para ajoelhar e orar) que, por graça, nós utilizávamos quando ninguém nos via.
A meio da igreja, suspenso do tecto por uma longa corrente, impunha-se um grande lustre de vidro, sem qualquer utilização prática, que atrapalhava sempre a passagem dos andores e das lanternas.
O toque do sino, com formas de comunicação distintas, ouvia-se em toda a povoação e arredores. Aos Domingos, o primeiro toque anunciava que havia missa. Um segundo toque significava que o Pároco, que se deslocava de Celorico da Beira, tinha chegado e um terceiro queria dizer que a celebração estava prestes a começar o que fazia apressar os que, por norma, ainda tiveram algum trabalho para ser feito.Nos dias de festa, o sino tovava mais vezes e repicava (dava sons repetidos)quando a procissão, ao recolher, percorria o adro e em nenhuma outra ocasião aquele som penetrava tão fortemente nos nossos ouvidos. Mais suave e cadenciado era o toque das Avé-Marias que, diariamente, alguém à tardinha providenciava, quase ao pôr do sol. Teoricamente, pedia aos camponeses que terminassem ou adiassem os seus afazeres mas, na realidade, embora se descobrissem (os homens tirassem o chapéu), a verdade é que o serviço continuava até ao anoitecer. Triste e dolorosa era a mensagem nostálgica quando alguém falecia: três toques seguidos, um toque, três toques seguidos, outro toque e assim sucessivamente tocava "a sinais" para que se soubesse que um deles nos tinha deixado para sempre...Com menos frequência, felizmente, também o sino se fazia ouvir, desatinada e descontroladamente, impulsionado por qualquer mão aflita a pedir socorro num caso de incêndio em casa ou pinhal.E nós, que bem cedo aprendemos a descodificar estes toques, subíamos a escadaria de pedra, sentávamo-nos juntinho ao sino, agarrávamos o badalo com a mãozita, mas com o cuidado preciso para não o fazer tocar!
Anexa à Igreja ficava a Sacristia onde uma grande e robusta cómoda guardava os paramentos, as toalhas dos altares, as bandeiras dobradas, o cálice e a patena (disco metálico que serve para cobrir o cálice), os corporais (rectângulos de pano branco que se colocam sobre o altar), os sanguíneos (panos brancos para limpar o cálice), as galhetas para o vinho e a água, os Missais e outros artigos religiosos. havia ainda uma divisão contígua à Sacristia, a chamada casa da fábrica, destinada a arrumação onde a desarrumação era total, pois aí se depositava tudo o que não servia mas podia vir a fazer falta.
Era assim a Casa de Deus, a Igreja de Vila boa do Mondego, a Igreja dos nossos tempos de infância. Nas nossas almas de criança, nada era era como aqui é descrito. O encantamento não tinha dimensão e aquela era, sem dúvida, a mais bela Igreja do mundo!
sábado, 30 de maio de 2009
VILA BOA DO MONDEGO - Descrição Física da aldeia - Década de 50 (Continuação)
Algumas habitações possuíam um único piso, sem janelas, podendo, no entanto, haver um postigo que deixava passar alguma claridade. A porta de entrada que, durante o dia quase sempre se mantinha aberta, era resguardada por uma meia porta segura por uma taramela (peça de madeira que gira em volta de um prego) onde nos dependurávamos num balançar ritmado de abrir e fechar.
O mais comum era a existência de uma cozinha, onde também se comia, com a respectiva pilheira (duas pedras ao alto e outra transversal debaixo da qual se acendia o lume) e a cantareira encimada por prateleiras normalmente enfeitadas com tiras de jornal a fazer rendilhado. Uma pequena mesa, que tinha forçosamente que ser baixa, porque os bancos assim o determinavam, encostada à parede para deixar mais espaço, raramente cumpria a sua missão porque era mais prático pegar no prato ou na malga e puxar o banco para junto da fogueira. Tanto mais que a panela de ferro continuava no seu posto e estava mesmo à mão...
Certas cozinhas, com apenas umas telhas levantadas em lugar de chaminé eram, à noite, um mundo negro de meter respeito e quase medo! Tudo era preto, invisível e, como tantas vezes acontecia, a lenha que se queimava era verde, custava a arder e não havia maneira de evitar que os olhos ardessem antes e não parassem de chorar. A luz da candeia de petróleo e a chama dos paus ou das cavacas que ardiam pouco minoravam aquela escureza. Se alguém chamava à porta, entre a escuridão da rua e a negrura do interior, era pela voz que se reconhecia e, de imediato, se tratava pelo nome. E nós, na idade de tudo aprender, facilmente compreendíamos a verdadeira diferença entre o dia e a noite, da lenha seca da verde ou molhada, das paredes brancas das tisnadas...e tantas outras!
A sala, em soalho de tábuas largas de madeira, contendo mesa, cadeiras e, em alguns casos guarda-louça, era utilizada para receber as visitas, nos dias festivos e na Visita Pascal sendo, para tal, cuidadosamente arrumada e limpa. O chão, esfregado de joelhos, com os nós da madeira a formar desenhos, cheirava a sabão durante uns dias. E os cheiros da nossa infância perduram para sempre!
Dos quartos, em número de um ou dois, pouco há a dizer: o leito de ferro, uma mesinha de cabeceira ou uma cadeira em seu lugar, uma cómoda em alguns casos e um lavatório, às vezes. Eram utilizados apenas para dormir e o mais importante era a palha do clochão não estar muito moída para não fazer covas e deixar descansar o corpo. no Inverno, o uso do cobertor de papa e das mantas de farrapos faziam esquecer os lençóis que só retardavam o aquecer e o adormecer. O número de quartos, por casa, quase nunca era proporcional ao número de filhos, mas improvisar era apanágio de socorrer necessidades e as tarimbas, com umas tábuas e uns pregos, resolviam o problema.
Havia famílias que dispunham de um pátio onde se localizava a adega, os potes de azeite, o forno, o lagar, o alambique e a salgadeira (caixa de madeira para salgar o porco).
Vem-nos à memória outro tipo arquitectónico de construção de meia dúzia de casas. Eram as mais vistosas da aldeia! As maiores, as que tinham chaminé, janelas grandes, andar cimeiro com varandim...numas delas até havia um anexo de madeira que devia dar imenso jeito em horas mais apertadas!
Escusado será referir que, nesta época, as fontes de energia eram o calor do sol, a chama das fogueiras e dos candeeiros de petróleo; a água das fontes transportada em cântaros de barro, à cabeça, sobre uma rodilha de trapos. Por isso, era de bom senso não deixar cair a noite sem ter água no cântaro e lenha no canto...
Dizia o saber popular que, quem não poupa a água e a lenha
Não poupa outra coisa que tenha.
O que era deveras relevante é que em todas estas casas fervilhava vida! As famílias eram numerosas, os telhados fumegavam, as conversas e as discussões ouviam-se nas ruas e as preocupações e aspirações deviam ser comuns. Mas nós, tão crianças, só viamos o que podia ser visto: um aglomerado de casas que formava a nossa aldeia, o lugar da nossa meninice, onde éramos felizes!
sexta-feira, 1 de maio de 2009
VILA BOA DO MONDEGO -Descrição Física da aldeia
Ao percorrer, aproximadamente, cinco quilómetros na antiga estrada nacional 116, no sentido Celorico da Beira Fornos de Algodres, depois da curva entre as Nogueiras, deparávamos com um aglomerado horizontal de casas que se estendia desde a Ponte ao Cemitério. VILA BOA DO MONDEGO à vista ! A cor predominante era o cinzento escuro do granito rude e natural, arrancado àqueles penedos imponentes que ali tão próximo se mantinham e havia sido utilizado para a grande maioria das construções das casas. Diziam que, no maior desses rochedos, o Penedo da Pomba, vivia uma moura encantada que não se deixava ver...
Podemos referir uma rua principal que, não tendo nome, começava no Eirô, passava pelo Largo de Santo António, Largo do Malvar, descia o íngreme Outeiro em direcção ao Forno e Largo das Linguarudas e terminava na Igreja. Desta artéria, que possibilitava percorrer toda a povoação, partiam as outras pequenas ruas, ruelas e becos que, como o do Canto, não tinham saída. Apenas uma dessas derivações era conhecida pelo nome de Geringota e era muito útil, para atalhar caminho, nas procissões, porque nem todos se atreviam a descer o Outeiro com sapatos de festa !
O pavimento das ruas, ligeiramente arqueado, era feito de gogos ( calhaus rolados ) terminando nas partes laterais em valetas que permitiam que as águas pluviais tivessem um leito próprio. Era frequente a existência de pedras compridas, de forma irregular que, colocadas nas ruas, junto às paredes, desempenhavam múltiplas funções : descanso, convívio, depósito de alfaias agrícolas e cestas com produtos hortícolas. Quem tivesse a sorte de ter uma destas pedras junto à sua casa era inevitável quedar-se nela antes de entrar, pois havia sempre um pretexto para o fazer.
Uma superfície considerável das ruas era ocupada por balcões (escadas ) talhados em granito, quase sem emendas, que possibilitava o acesso à parte habitacional das casas havendo um piso térreo que podia servir de arrecadação ou dormida dos rebanhos em alguns casos. O alojamento do porco, burro e cavalo encontrava-se muito próximo e a capoeira das galinhas reduzia-se a uns paus toscos que, assentes no chão e metidos nos buracos das paredes, com umas giestas negrais a servir de tecto, era o bastante para pernoitar.
Ruas da nossa aldeia ! Onde decorreu uma parte tão significativa da nossa infância ! Onde todos se conheciam e a vida ia acontecendo sem pressas...
Só nós, as crianças, é que corríamos à procura dos sítios mais adequados às brincadeiras que nós próprias inventávamos...
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