A manhã revestia-se de pormenores relacionados com a ida à missa, que tinha lugar por volta das nove ou dez horas, de acordo com a disponibilidade do Pároco que se deslocava de Celorico. O almoço ( primeira refeição do dia), podendo constar das sobras da Ceia, embora de forma apressada, era inevitável porque não era bom ir para a Igreja em jejum. Em seguida, procedia-se à higiene domingueira havendo o cuidado de lavar, com água e sabão, a maior superfície do corpo possível o que originava despejar, na rua, a bacia de zinco ou de esmalte várias vezes. Era complicado se, entretanto, o primeiro toque do sino se fazia ouvir o que acelerava ainda mais o arranjo das crianças que, naquele dia, não podiam faltar à missa. Se havia roupa nova, a estrear, era mais fácil; mas, se já vinha de um irmão mais velho, ou de um vizinho, quase sempre era necessário fazer dobras e disfarçar, de outros jeitos, o desajuste do tamanho. Com o calçado, agudizava-se a situação: se era novo, causava sempre incómodo por ser a primeira vez; se já tinha sido usado e os pés, por norma, andavam descalços, também se sentiam apertados e com dificuldade de movimentos. O certo é que tudo isto despendia tempo e causava atrapalhação a quem, pelo tempo, não era controlado. Um dos últimos retoques era o pentear que, se no caso dos rapazes era molhar o pente, fazer o risco, ou o caracol a cair para a testa, no caso dos mais pequeninos, tornava-se moroso no caso das meninas cujos cabelos compridos custavam a desenriçar para fazer, a preceito, as tranças ou prendê-lo com um laço que, com o sino a apressar, nunca calhava bem à primeira. Já quase em cima da hora se colocava uma gravatinha que, sobressaindo na camisa branca, dava aos rapazes um ar de homenzinhos. Por último, para enfeitar as meninas, ia-se buscar a caixinha do ouro, nos casos em que existia, e tudo o que era para pôr se punha: brincos, anéis, fios ao pescoço … e, quando acontecia ser um daqueles cordões com mais de um metro de comprido as voltas eram tantas que, por pouco, não se chegava atrasado à missa.
A indumentária dos adultos em pouco diferia de um Domingo habitual. Os homens, envergando o fato das ocasiões especiais, sobrepunham-lhe uma samarra para se protegerem do frio que, em situações de descanso, custava mais a suportar e usavam o chapéu novo que se mantinha guardado; as mulheres, pouco se preocupavam com a vestimenta pois o xaile preto de lã, dobrado em triângulo, cobria tudo e aconchegava muito. Tinha importância, isso sim, pentear bem o cabelo, fazer a trança de novo e conseguir um carrapicho volumoso, seguro com ganchos, de preferência de osso de tartaruga, que prendiam e enfeitavam mais. O cabelo era, talvez, a única presunção mas, coberto pelo lenço ou pelo véu, apenas discretamente se adivinhava.
Mais a preceito se preparavam as moças casadoiras com as suas saias de pregas bem vincadas ou justas, camisolas de lã, por elas manufacturadas, meias finas e sapatos pretos com um bocadinho de salto. Os cabelos que, uma a uma, foram cortando, apresentavam-se neste dia cheios de caracóis em resultado das permanentes que, na véspera, tinham feito numa cabeleireira de Celorico. Os adornos de ouro, já propriedade própria, contribuíam para reforçar a postura dos seus corpos esguios que, mercê do amanho das terras, não acumulavam gorduras.
Para a Igreja o povo se ia encaminhando sempre atento aos toques do sino. Os homens iam chegando em primeiro lugar e, em pequenos grupos, conversavam no adro, junto da porta lateral. A grande maioria subia as escadas exteriores e instalava-se no Coro; alguns, de mais idade, ocupavam os bancos junto do altar de Nossa Senhora. As mulheres e as crianças entravam pela porta principal, onde o guarda-vento dava um jeitão, dirigindo-se para os lugares onde, permaneciam, em muitos casos, as pequenas almofadas rectangulares, para se ajoelharem. A verdade é que a Igreja se ia enchendo, pois havia ainda a acrescentar a presença dos camponeses das quintas e os habitantes do Barco que, sensibilizados pela quadra natalícia, queriam assistir à missa.
Várias gerações ali se encontravam com o objectivo comum de festejar o Nascimento de Jesus. O ritual da Celebração pouco diferia de um Domingo habitual mas, o espírito de Natal dava mais inspiração para, em latim, se rezar a Confissão, o Credo, o Pai Nosso… e, quando chegava o momento dos cânticos, na língua viva em que todos nos expressávamos, as vozes afinavam-se e, em uníssono, enchiam a Igreja, sobrevoavam o Presépio e, decerto, chegavam ao céu!
A cerimónia terminava com o "beijar o Menino". O sacerdote retirava-O das palhinhas enquanto os fieis, entoando cânticos de Natal, formavam fila na coxia. Como era tão perfeito! Rosado, sorridente, rechonchudo, com as perninhas ligeiramente cruzadas, no joelho ou no pé se ia beijando à medida que, com um paninho branco, o sacerdote ia apagando vestígios do carinho ali deixado:
- Ó meu Menino Jesus
- Convosco é que eu estou bem.
- Nada deste mundo quero
- Nada me parece bem!
- Ó meu Menino Jesus
- Boquinha de requeijão
- Dai-me da vossa merenda
- Que a minha mãe não tem pão.
Eram os Natais da nossa infância que, na ingenuidade própria da idade, acreditávamos que fossem sempre assim: na mesma Igreja, na mesma aldeia… como se não houvesse mais mundo e nós continuássemos sempre crianças…
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