O NATAL
Os Natais da nossa infância tinham um carácter essencialmente religioso. O nascimento de Jesus concretizava-se no Presépio que, com a devida antecedência, era armado na Igreja ao lado esquerdo do altar-mor (altar principal da Igreja). O musgo, apanhado nos pinhais, cobria toda a superfície onde se colocavam as diversas figuras que, embora fossem sempre as mesmas, cada ano nos pareciam mais belas e reais devido à conotação que lhes atribuíamos. A gruta de Belém, centrada e elevada à custa das pedras escondidas sob o musgo verde, sobressaía no conjunto e para lá se dirigiam, antes de tudo, os nossos olhares meigos e piedosos que contemplavam tanto desconforto agudizado pelo frio intenso daqueles Dezembros rigorosos que não se compadeciam com a nudez do Menino Jesus. Nossa Senhora e São José, um de cada lado do berço de palhinhas, não Lhe podiam pegar ao colo embrulhando-O nos seus mantos mas, a vaquinha e o burrinho, ali encostados e quietos, tinham o propósito de, com o seu bafo, aquecer um pouco o corpinho do Menino. No cimo da gruta permaneciam dois anjos de asas abertas que assinalavam o poder divino daquele Nascimento. Desviando o olhar, percorriam-se caminhos de terra trilhados pelos Reis Magos, pisados por pastores levando presentes e, de onde em onde, surgiam rebanhos em bardos para não se dispersarem. Aqui e além surgia uma ponte, um moinho, mais umas ovelhas dispersas acompanhadas pelo pastor e o cão… e, novamente, os nossos olhos regressavam ao centro das atenções que era o Menino Jesus.
A montagem deste Presépio, que acompanhávamos a par e passo, era uma alegria antecipada, uma participação com significado, uma curiosidade sempre nova que, no Dia de Natal, observávamos em silêncio como se fosse a primeira vez. Sabíamos, da Catequese, que o facto tinha ocorrido muito longe, em Belém, mas pensávamos que seria uma aldeia igual à nossa: com frio, animais e pessoas simples e felizes com o Nascimento de Jesus.
A noite da Consoada, na véspera de Natal, revestia-se de algumas particularidades relacionadas com a alimentação. As filhós, tradição desta quadra festiva, faziam-se à noitinha depois de se deixar levedar a massa. Esta, composta por farinha, fermento dissolvido em água morna, ovos, azeite quente e uma pouca de água-ardente, era demoradamente amassada com as mãos, num alguidar de barro, até a massa ficar consistente e se desprender dos dedos. A seguir, dava-se-lhe uma forma arredondada, alisava-se com um punhado de farinha, desenhava-se, com a cota da mão, uma pequena cruz num cantinho, tapava-se o alguidar com uma toalha dobrada, das mais usadas, e colocava-se perto da fogueira para aproveitar o calor e levedar mais depressa, havendo o cuidado de ir rodando o alguidar. Algumas horas após, constatado o aumento do volume da massa e os desenhos gretados na superfície desta, procedia-se à fritura à qual já toda a família assistia, tomando assento nos seus bancos. O lume mantinha-se aceso com calor certo e a lenha, de preferência seca e em cavacas pequenas; a trempe, sobre o fogo moderado, pronta para receber a frigideira funda coberta de azeite; ali ao lado, o alguidar da massa, de onde se iam retirando pedaços em pequenas bolas que, um a um, depois de bem estendidos sobre um joelho coberto por um pano limpo, assumiam a forma circular e eram deitados sobre o azeite que, rapidamente, os fazia crescer e alourar. Esta tarefa culinária, festiva, rara e gulosa, exigia a colaboração de quem virasse a filhó, a fim de fritar dos dois lados, quem fizesse a manutenção da fogueira, quem as fosse polvilhando com açúcar enquanto quentes, e quem as provasse para se saber se estavam boas…
A noite era de festa!
Que importava a escuridão, a rigidez do frio, o soprar do vento ou mesmo que a geada ou a neve caíssem lá fora? A cozinha estava mais iluminada e quente, a proximidade do lume maior que a habitual, outro alguidar se ia enchendo de filhós quentes, douradas, doces, estaladiças...
-Era só para provar! Comer, depois da Ceia!
Mas nós, as crianças, que há um ano esperávamos por elas, íamos provando uma a seguir à outra para termos a certeza de que estavam boas, muito boas e quiséssemos, intuitivamente, gravar nas nossas mentes aquele doce sabor de infância.
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