sexta-feira, 26 de junho de 2009

VILA BOA DO MONDEGO _ A PONTE ROMANA - anos 50/60

De novo surge a Ribeira a correr nas vivências da nossa infância… caudalosa e de águas negras durante o Inverno, na altura das cheias, cobrindo por completo as poldras (pedras de passagem de uma para a outra margem) ao fundo da quelha do Chão do Cano e da Salgada, impedindo a passagem entre as margens com dificuldades acrescidas para quem vivia do lado oposto à aldeia…como visionamos aquelas pedras alinhadas entrelaçadas por tantos detritos que a força da corrente não conseguia fazer passar entre elas…como recordamos que a única forma de alcançar a aldeia era a Ponte, tão longe, lá ao fundo onde a Ribeira quase acabava! Para isso era necessário ir pelas Nogueiras, atravessar no Cabouco, percorrer a estrada alcatroada, como se viéssemos de Celorico, e lá estava a Ponte que, não fosse a tentação de nela nos debruçarmos, quase esquecíamos o motivo de tão grande desvio.
No entanto, embora a sua funcionalidade tivesse precedido a nossa concepção de arquitectura, nos dias quentes de Verão, com a Ribeira quase seca, sentindo o fresquinho da areia molhada debaixo dos seus grandes arcos, onde as nossas vozes faziam eco, de forma bem concreta compreendemos o que era uma Ponte, a primeira das nossas vidas e, decerto, a única sob a qual havíamos de ter brincado… indiferentes ao seu passado romano porque, na infância, vivemos o presente tão intensamente como se nós próprios fôssemos a medida do tempo.
Mas, a Ponte não se limitava à sua realidade física! A Ponte, era antes de chegar à Ponte: era junto do enorme freixo, na paragem da camioneta da carreira, nas casas de habitação ali existentes, na maneira de identificar alguns dos residentes, ( como o Manel da Ponte que, embora não tivesse que atravessar a Ribeira, também junto dela deixou pegadas de infância), no local onde se esperava por alguém, no sítio onde se podia ver a placa, com uma seta fininha a apontar para um caminho de terra batida: Vila Boa do Mondego.

domingo, 7 de junho de 2009

VILA BOA DO MONDEGO - O RIO MONDEGO -Anos 50/60

O facto de o Rio Mondego deslizar tão próximo da nossa aldeia teve influência na sua denominação quando, por volta dos anos cinquenta, foi decidido alterar o nome de Jejua para Vila Boa do Mondego. É certo que alguns de nós ainda não tínhamos nascido mas, mais tarde, apercebemo-nos de que a mudança se impunha porque ninguém gostava daquele nome que não se ajustava à gente da nossa terra. Foi, segundo ouvíamos contar, fruto da desilusão de um militar francês que, preparando-se para saquear a aldeia, na época denominada Vila Boa, nada encontrou pois os habitantes utilizaram a estratégia de esconder os mantimentos antes de abandonarem as suas casas. Independentemente destas duas designações, a verdade é que nascemos em Vila Boa do Mondego e crescemos a ver o Rio Mondego que ainda corre nas nossas lembranças…
No Verão era o local predilecto para desfrutar da frescura das suas águas e da sombra dos freixos e amieiros. Bom a valer era quando nos deixavam tomar banho, sempre sob vigilância, porque éramos pequenos, não sabíamos nadar e havia sítios profundos. Os rapazes da nossa idade tinham mais sorte; escapavam-se, banhavam-se e apanhavam bogas que iam enfiando num junco até perfazerem uma fiada de peixes. Também as raparigas, nas tardes de Domingo, davam o seu passeio ao Rio. Porém, não tomavam banho para não se exporem a olhares curiosos. Para tal, de vez em quando, à tardinha, reuniam-se e, discretamente, dirigiam-se ao sítio do Penedo onde despiam a roupa e, em calças (roupa de dentro) e combinação, tomavam um banho completo que só ali era possível. É evidente que, nestas situações, havia sempre alguém atento e, certa vez, um grupo de rapazes mais dados a maroteiras, foram no seu encalço e esconderam-lhes a roupa que, na margem, tinham deixado amontoada. Contavam, depois, que se fartaram de rir ao vê-las a fugir, a escorrer, a esconderem-se nos milheirais …
Também no pino do Verão se procedia à limpeza total da roupa da cama. Para o Rio se transportavam, à cabeça ou em burros, os lençóis amarelados que nem tinham sido utilizados, os cobertores, as mantas de farrapos e a enxerga (espécie de saco com abertura ao meio) esvaziada para receber palha nova. Na água corrente se metiam, se estendiam no areal, se esfregavam com sabão e se deixavam a corar ao sol do Estio radioso. Entretanto, e como havia sempre várias mulheres que, entre si, se ajudavam dado o peso das peças, aproveitavam para conversar, comer o farnel e deixar secar as saias que, inevitavelmente, tinham molhado. Seguidamente, depois de retirado o sabão, era preciso torcer tudo o melhor possível para facilitar a subida até à encosta onde as giestas e os carvalhos serviam de estendal.

Nós, que só teoricamente sabíamos da existência de praias, pensávamos que eram assim: água, sol e areia!...

VILA BOA DO MONDEGO -AS VENDAS / TABERNAS - Anos 50/60

Nos finais dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, sob os quais incidem estas memórias, havia duas Vendas/Tabernas em Vila Boa do Mondego. Uma delas, improvisada numa casa de habitação, tinha como acesso umas escadas de granito, sem resguardo, cuja descida se tornava perigosa,a horas tardias, pela bebida em excesso agravada pela escuridão da noite. Localizava-se a seguir à Igreja na primeira ruela do lado esquerdo, que não tinha saída. No interior, destacava-se um largo balcão de madeira, atrás do qual os vendeiros se mantinham de pé, solícitos para aviar quem chegasse, umas mesinhas com algumas cadeiras onde os homens jogavam as cartas, um banco comprido de madeira encostado à parede e ainda a cabine telefónica pública, ao canto direito, alojando o aparelho preto e misterioso que, de tempos a tempos, se fazia ouvir. A sua utilização não estava incluída nos hábitos das pessoas, só em casos de grande urgência: ou para chamar o médico, quando as mezinhas caseiras se revelavam ineficazes ou para receber alguma notícia de familiares que, a maioria das vezes, nada de bom trazia. Era um de nós, que por ali brincávamos, que se incumbia da primeira parte do sobressalto ao ir procurar a pessoa para atender a chamada, como se dizia. Largava-se tudo e, a correr, subiam-se os degraus de pedra, entrava-se na dita cabine, fechava-se a porta, voltava-se a abrir para pedir ajuda porque aquilo era complicado para se poder ouvir quem de longe falava…respondia-se com força para facilitar a comunicação e abafar um pouco a algazarra que, na taberna, continuava…e, a arfar de cansaço e tristeza, muitas vezes se deixava o local sem ter compreendido claramente a mensagem ou a chorar porque a tinha entendido bem demais…
A outra Taberna, não muito distante desta, tinha uma localização privilegiada num largo onde os carros e outros transportes podiam estacionar e inverter a marcha. Mais adequada ao fim a que se destinava: a porta ao nível da calçada, mais espaço no interior, que não evidenciava tanto o aposento do telefone e um grande pátio anexo onde acondicionavam, de forma ordeira, muitos dos produtos de venda.
Ambos os estabelecimentos comerciais, únicos na aldeia, funcionavam como Vendas, Tabernas e Mercearias encontrando-se apetrechados com tudo o que era estritamente necessário para viver: mercearias, conservas, azeite, petróleo, vinho, aguardente e tantas outras miudezas. Tudo se vendia avulso (de acordo com a quantidade desejada): os produtos sólidos em cartuchos de papel pardo e os amendoins, por nós considerados coisa rara, era necessário acondicioná-los bem para não saírem do seu pequeno cone feito em papel de jornal; os líquidos eram transportados no recipiente que cada freguês levava de casa. Quando se efectuava qualquer compra, o mais usual era não pagar e mandar apontar no livro a isso destinado, " A Caderneta". Por isso, havia o cuidado de alternar a despesa nas duas Vendas para não tornar demasiado extensa nenhuma delas. Por norma, era no final das colheitas que se "riscavam" as dívidas mas, acontecia que, quem não tinha esta fonte de receita, chegava a perder o crédito em ambas, ou seja não havia mais fiado, o que constituía um desarranjo e vergonha porque tudo se sabia e ninguém gostava de ser tido como caloteiro. Nós, as crianças, acatávamos de bom grado qualquer recado para fazer um avio: era interessante entrar na Taberna, sobretudo à noite em que a luz intensa do petromax quase nos cegava e presenciar, ainda que repentinamente, um ambiente que não nos era habitual. E,afinal, pagar ou mandar apontar não tinha assim tanta importância; importante era trazer o cartucho com o arroz ou a lata com o azeite ou o petróleo. Bons fregueses, porque compravam muito e pagavam de imediato, era o pessoal das Casetas( casas dos vigilantes do caminho de ferro) que não cultivavam nada, tinham ordenado mensal certo e estavam habituados a outro conceito de vida.
Uma ocasião, numa destas Tabernas, onde um rapazote costumava ajudar no atendimento, apareceu uma mulher com uma almotolia (para azeite) a solicitar, em surdina, meio quartilho de aguardente. O rapaz, estupefacto, repetiu o pedido em voz alta, o que a encolerizou. Ao mesmo tempo que insultava o rapaz ia repetindo, só para ele ouvir, que era mesmo aguardente que, como de costume, pretendia. Os presentes deram conta do trocadilho, mas não estranharam tratando-se de quem era e ela lá foi, ansiosa por chegar a casa que nem era assim tão perto.
Também nestas Vendas se compravam as nossas ardósias, lápis, borrachas, canetas de aparo e aqueles cadernos de duas linhas onde, com a mãozinha a tremer, começámos a desenhar as primeiras letras com medo que saíssem para fora as que não deviam sair!
Não sendo locais destinados a crianças e mulheres eram frequentados, sobretudo ao anoitecer, por muitos homens que, sob o pretexto de dar um recado, tratar de assunto ou simplesmente beber um copo, iam ficando, bebendo, jogando e conversando até que a discussão surgia, os ânimos se alteravam e ninguém respondia por si. Nestas alturas, as mulheres cansadas de esperar os maridos para a ceia e suspeitando do efeito do vinho, deslocavam-se às Tabernas, envergonhadas e amedrontadas a espreitar à porta, sem poderem adivinhar qual seria o desfecho…
A primeira Venda/Taberna que referimos acabou por fechar; pelas dívidas em excesso, não seria, mas o casal tinha duas filhas, jovens e bonitas, para as quais era preciso providenciar um futuro melhor que, num Continente distante, foram procurar.
Em compensação, tempos depois, outra Venda/Taberna abriu no cimo do povo que veio facilitar o abastecimento dos habitantes em redor.Esta, construída de raiz para o fim a que se destinava, possuindo duas partes distintas para mercearia e taberna, era propriedade de lavrador abastado que vendia vinho e azeite produzidos nas suas próprias terras.
Descortina-se ainda, nestas memórias de infância que se vão avivando com o tempo, um grande cartaz colorido, dependurado na parede das Tabernas, com diversos objectos expostos: chocolates, pentes, relógios,isqueiros...eram as Rifas!...a desafiar a nossa curiosidade e a nossa sorte!

quinta-feira, 4 de junho de 2009

VILA BOA DO MONDEGO - AS FONTES E CHAFARIZES - Anos 50/60

As nascentes encarregavam-se de abastecer a população através das fontes e dos chafarizes que diferenciavam na forma e no funcionamento. As fontes eram poços a céu aberto escavados na rocha onde a água, saindo por pequenas fendas, se ia acumulando à mistura com limos, folhas secas, terra e outros detritos trazidos pelo vento e pelo fundo dos cântaros e regadores. O mergulhar destas vasilhas era precedido por umas voltinhas circulares que, quando bem sucedidas, podiam evitar o que não se pretendia e apanhar apenas água. É certo que, em algumas ocasiões a água, à superfície, mal se via e era preciso despejar e limpar a fonte que, algumas mulheres, quase sempre as mesmas, se encarregavam de fazer. Contudo, nem a Fonte do Forno nem a de Belém foram, alguma vez, responsabilizadas por algum mal-estar ou posta em causa a qualidade das suas águas.
Junto das fontes havia uns patamares de pedra onde os cântaros esperavam que as rodilhas fossem ajeitadas para que pudessem assentar bem na cabeça. Era uma tarefa feminina que requeria bastante equilíbrio e que nós, por mais que tentássemos, não conseguíamos imitar.
Os chafarizes superavam as fontes, no que se refere à construção, uma vez que dispunham de uma torneira inserida numa parede trabalhada. Ao lado do Chafariz do Eirô, encostado ao muro da Vinha da Porta, havia o único tanque para lavar roupa, mas em nada se comparava à água corrente da ribeira ou do rio. No cimo do povo existia ainda o Chafariz do Outeiro que satisfazia as necessidades da vizinhança.
Fazia parte das nossas tarefas diárias ir buscar água à fonte para que as nossas mães, ao chegarem do campo, tivessem água em casa para fazer a ceia. Fazíamo-lo de bom grado, com o regador de zinco, mal cheio e, pelo caminho, íamos parando e bebendo pelo cano, não porque tivéssemos sede, mas porque achávamos graça…

VILA BOA DO MONDEGO - O FORNO GRANDE -Anos 60

Era um forno grande e público que laborava com frequência de modo comunitário e servia toda a população. Alojava-se num espaço próprio, em paredes de pedras soltas onde duas enormes bancadas também de pedra, facilitavam a colocação dos tabuleiros onde os pãezinhos de centeio aguardavam a altura certa de entrar naquele buracão escaldante. Seria impraticável utilizá-lo individualmente quer pelo dispêndio de lenha, quer pelo excesso de trabalho, ou até mesmo para não desvirtuar o seu propósito. Normalmente, funcionava com quatro ou cinco pessoas que, observando um ramito de árvore metido num buraco da parede, junto à porta, indicava que alguém estava interessado em cozer e procurava parceria para fazer a fornada. Esta era a senha que rapidamente circulava e formava grupo. Em tempo de festas funcionava dia e noite numa produção mais gulosa para que os biscoitos não faltassem em nenhum lar. E a pequenada andava por ali, ávida para rapar a massa dos alguidares de barro à medida que se iam esvaziando.
Em ocasiões mais ou menos cíclicas, o forno servia de abrigo a ciganos e cesteiros onde, à falta de melhor, obtinham alguma temperatura real ou imaginária. Muitos deles já os conhecíamos e por ali andávamos, com timidez e curiosidade, observando formas diferentes de viver. Quando partiam, não sentíamos qualquer nostalgia por ficarmos porque esta aldeia, no nosso pensar de então, era o único lugar do mundo onde poderíamos viver e ser felizes.

VILA BOA DO MONDEGO - AS ALMINHAS - Anos 50

Nas encruzilhadas dos caminhos, em alguns sítios, deparávamos com figuras gravadas na pedra sobre um muro que, o passar do tempo ou a rudez da arte, não permitindo uma interpretação nítida, nos fora ensinado a olhar com respeito devido à conotação sagrada que lhe era atribuída: as Alminhas. Os homens mais devotos, ao passar, tiravam o chapéu e nós, na idade em que tudo se aprende, sabíamos de cor o que se devia dizer:
-Alminhas que estais, por quem esperais?
-Por vós e demais…
Contudo, nem sempre o fazíamos ou por não enterdermos o conteúdo ou porque não queríamos "esperar", pois nenhuma criança gosta desta palavra que interrompe a sua pressa de crescer.

VILA BOA DO MONDEGO- O CEMITÉRIO -Anos 50/60

Passado o Outeiro, a correnteza de casas terminava e surgia um caminho deserto que, entre as Tapadinhas e os Cabecinhos, levava ao Cemitério como preparação para o isolamento completo a que estes lugares são vocacionados. Um muro alto de granito delimitava o espaço onde todos os habitantes da aldeia sabiam ter lugar garantido. A porta, gradeada de ferro preto, sempre aberta ou encostada, dava acesso à última morada que, na generalidade, era a terra dura e fria, sem marcação prévia, por vezes até distanciada de familiares que ali já se encontravam. O espaço era pequeno e, à excepção de duas ou três campas cobertas com mármore e mais uma meia dúzia ladeadas com grades de ferro, todas as outras se evidenciavam devido à pequena elevação de terra, alisada e com algumas flores. A identificação não era fundamental, pois todos sabíamos onde todos estavam e era nos Finados que os familiares acorriam para cuidar o espaço e matar saudades. Então, as sepulturas ficavam revestidas de crisântemos pequeninos aos quais se retirava o pé para formar uma espécie de colcha em tons de vermelho escuro que faziam realçar o amarelo da cruz que, por cima, com as mesmas flores se desenhava.
O Cemitério, por se encontrar um pouco distanciado da povoação e, propositadamente nos ser evitado, não deixou vestígios assinaláveis nas nossas vivências que, despertas para a vida, esqueciam este lugar transferindo-o para o fim do mundo.