Nos finais dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, sob os quais incidem estas memórias, havia duas Vendas/Tabernas em Vila Boa do Mondego. Uma delas, improvisada numa casa de habitação, tinha como acesso umas escadas de granito, sem resguardo, cuja descida se tornava perigosa,a horas tardias, pela bebida em excesso agravada pela escuridão da noite. Localizava-se a seguir à Igreja na primeira ruela do lado esquerdo, que não tinha saída. No interior, destacava-se um largo balcão de madeira, atrás do qual os vendeiros se mantinham de pé, solícitos para aviar quem chegasse, umas mesinhas com algumas cadeiras onde os homens jogavam as cartas, um banco comprido de madeira encostado à parede e ainda a cabine telefónica pública, ao canto direito, alojando o aparelho preto e misterioso que, de tempos a tempos, se fazia ouvir. A sua utilização não estava incluída nos hábitos das pessoas, só em casos de grande urgência: ou para chamar o médico, quando as mezinhas caseiras se revelavam ineficazes ou para receber alguma notícia de familiares que, a maioria das vezes, nada de bom trazia. Era um de nós, que por ali brincávamos, que se incumbia da primeira parte do sobressalto ao ir procurar a pessoa para atender a chamada, como se dizia. Largava-se tudo e, a correr, subiam-se os degraus de pedra, entrava-se na dita cabine, fechava-se a porta, voltava-se a abrir para pedir ajuda porque aquilo era complicado para se poder ouvir quem de longe falava…respondia-se com força para facilitar a comunicação e abafar um pouco a algazarra que, na taberna, continuava…e, a arfar de cansaço e tristeza, muitas vezes se deixava o local sem ter compreendido claramente a mensagem ou a chorar porque a tinha entendido bem demais…
A outra Taberna, não muito distante desta, tinha uma localização privilegiada num largo onde os carros e outros transportes podiam estacionar e inverter a marcha. Mais adequada ao fim a que se destinava: a porta ao nível da calçada, mais espaço no interior, que não evidenciava tanto o aposento do telefone e um grande pátio anexo onde acondicionavam, de forma ordeira, muitos dos produtos de venda.
Ambos os estabelecimentos comerciais, únicos na aldeia, funcionavam como Vendas, Tabernas e Mercearias encontrando-se apetrechados com tudo o que era estritamente necessário para viver: mercearias, conservas, azeite, petróleo, vinho, aguardente e tantas outras miudezas. Tudo se vendia avulso (de acordo com a quantidade desejada): os produtos sólidos em cartuchos de papel pardo e os amendoins, por nós considerados coisa rara, era necessário acondicioná-los bem para não saírem do seu pequeno cone feito em papel de jornal; os líquidos eram transportados no recipiente que cada freguês levava de casa. Quando se efectuava qualquer compra, o mais usual era não pagar e mandar apontar no livro a isso destinado, " A Caderneta". Por isso, havia o cuidado de alternar a despesa nas duas Vendas para não tornar demasiado extensa nenhuma delas. Por norma, era no final das colheitas que se "riscavam" as dívidas mas, acontecia que, quem não tinha esta fonte de receita, chegava a perder o crédito em ambas, ou seja não havia mais fiado, o que constituía um desarranjo e vergonha porque tudo se sabia e ninguém gostava de ser tido como caloteiro. Nós, as crianças, acatávamos de bom grado qualquer recado para fazer um avio: era interessante entrar na Taberna, sobretudo à noite em que a luz intensa do petromax quase nos cegava e presenciar, ainda que repentinamente, um ambiente que não nos era habitual. E,afinal, pagar ou mandar apontar não tinha assim tanta importância; importante era trazer o cartucho com o arroz ou a lata com o azeite ou o petróleo. Bons fregueses, porque compravam muito e pagavam de imediato, era o pessoal das Casetas( casas dos vigilantes do caminho de ferro) que não cultivavam nada, tinham ordenado mensal certo e estavam habituados a outro conceito de vida.
Uma ocasião, numa destas Tabernas, onde um rapazote costumava ajudar no atendimento, apareceu uma mulher com uma almotolia (para azeite) a solicitar, em surdina, meio quartilho de aguardente. O rapaz, estupefacto, repetiu o pedido em voz alta, o que a encolerizou. Ao mesmo tempo que insultava o rapaz ia repetindo, só para ele ouvir, que era mesmo aguardente que, como de costume, pretendia. Os presentes deram conta do trocadilho, mas não estranharam tratando-se de quem era e ela lá foi, ansiosa por chegar a casa que nem era assim tão perto.
Também nestas Vendas se compravam as nossas ardósias, lápis, borrachas, canetas de aparo e aqueles cadernos de duas linhas onde, com a mãozinha a tremer, começámos a desenhar as primeiras letras com medo que saíssem para fora as que não deviam sair!
Não sendo locais destinados a crianças e mulheres eram frequentados, sobretudo ao anoitecer, por muitos homens que, sob o pretexto de dar um recado, tratar de assunto ou simplesmente beber um copo, iam ficando, bebendo, jogando e conversando até que a discussão surgia, os ânimos se alteravam e ninguém respondia por si. Nestas alturas, as mulheres cansadas de esperar os maridos para a ceia e suspeitando do efeito do vinho, deslocavam-se às Tabernas, envergonhadas e amedrontadas a espreitar à porta, sem poderem adivinhar qual seria o desfecho…
A primeira Venda/Taberna que referimos acabou por fechar; pelas dívidas em excesso, não seria, mas o casal tinha duas filhas, jovens e bonitas, para as quais era preciso providenciar um futuro melhor que, num Continente distante, foram procurar.
Em compensação, tempos depois, outra Venda/Taberna abriu no cimo do povo que veio facilitar o abastecimento dos habitantes em redor.Esta, construída de raiz para o fim a que se destinava, possuindo duas partes distintas para mercearia e taberna, era propriedade de lavrador abastado que vendia vinho e azeite produzidos nas suas próprias terras.
Descortina-se ainda, nestas memórias de infância que se vão avivando com o tempo, um grande cartaz colorido, dependurado na parede das Tabernas, com diversos objectos expostos: chocolates, pentes, relógios,isqueiros...eram as Rifas!...a desafiar a nossa curiosidade e a nossa sorte!