Tratava-se de uma tecelagem manual que, graças ao trabalho paciente e habilidoso da Senhora Dolores, cobria de mantas de farrapos a aldeia inteira, sem contar as que iam sendo guardadas nas arcas para integrar o enxoval das moças casadoiras. Com frequência entrávamos na casa do tear, atraídos pelo ranger das peças e pela bondade da tecedeira que sempre nos presenteava com qualquer coisa do nosso agrado: figos secos, amendoins, bolachas, um quarto de trigo… fazia-nos confusão aquele aparelho de madeira, com pedais e fios por toda a parte; primeiramente, olhávamos a ver se compreendíamos e, para justificar a nossa presença, íamos ouvindo as explicações que, por serem repetidas, acabamos por decorar: a “urdidura” era o conjunto de fios tensos colocados verticalmente que definia o tamanho da peça; a “trama” era o segundo conjunto ( constituído por tiras de farrapos cortados e enrolados) que, com o auxílio de uma navete ( espécie de agulha de madeira) passava entre os fios da urdidura através de uma abertura chamada “cala”; esta, resultante da acção de uma peça denominada “pente”, permitia levantar e baixar alternadamente os fios da urdidura para a passagem da trama. Deste sucessivo e ordenado entrelaçamento dos dois conjuntos de fios, resultavam mantas e passadeiras coloridas que enfeitavam os quartos e as salas das casas da nossa aldeia. Nunca nos passou pela cabeça que alguma vez conseguíssemos exercitar esta arte mas, nos serões de Inverno, ajudávamos a rasgar em tiras as peças de roupa velha que, depois de cosidas umas às outras, se enrolavam em novelos e metiam em sacos para irem para o tear. Ali ficavam à espera de vez, sem compromisso certo de entrega. O mais importante era que as mantas ficassem bonitas, mesmo que os trapos fossem desmaiados. Para isso, contava-se com a artimanha da tecedeira que, quase sempre, trocava novelos esbranquiçados por garridos para, de onde em onde, tecer pedaços de arco-íris…
No pequeno pátio anexo, resguardado por um muro, existia uma figueira de figos pretos, como não havia outros na povoação, que atraíam o olhar de quem passava e nos desafiavam a nós…À cautela, a tecedeira escondia-os nas folhas largas que prendia com carumas. Como sabíamos isso, mais tempo nos demorávamos a olhar para descobrirmos onde estavam os figos que, solicitados com jeito, a faziam largar o tear para vir colher os que nós quiséssemos.
Escreve-se pouco, mas pensa-se muito.
Recuando no tempo, relembramos imagens, sons e cheiros, sentimentos e emoções e outras sensações que continuam indescritíveis como a de sentir o aconchego das mantas de farrapos, que quase nos tapavam a cabeça, nas noites geladas de Inverno.
1 comentário:
olá!
Pois a Senhora Dolores era irmã da minha avó paterna.
Muito Obrigado! pelas suas palavras.
Tambem me lembro da pequena casa com o tear e de vêr a Tia Dolores a tecer.
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