segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Vila Boa do Mondego - A matança do porco - Anos 50/60

No tempo da nossa infância tudo tinha a sua utilidade própria, o supérfluo não existia nem no vocabulário nem na vida quotidiana. Os animais, não sendo de estimação, eram cuidadosamente tratados, na medida em que faziam parte integrante da vida económica das famílias. Entre eles destacava-se o porco que passava a vida na pocilga a comer, dormir e fazer estrume na palha de centeio e giestas. Comprado de pequenino na Feira da Carrapichana ou na Feira Nova, depois de bem escolhido para não trazer mazelas, levava-se ao colo até se meter num canastro ( cesto de verga de bordos altos) para ser transportado num cavalo ou num burro. A primeira preocupação era ver se o animal comia! A partir daí, a panela grande de ferro permanecia junto do lume onde se coziam couves, nabos, batatas, abóboras que, já no caldeiro, com umas mãos-cheias de farelo, constituía a vianda ( alimentação) diária do suíno que, se ninguém lhe deitasse “mau olhado”, seria suposto crescer e engordar a olhos vistos. O mais desejável seria ter dois porcos no curral: um para matar, outro para vender. Porém, isto de ter um porco já não era para todos, quanto mais cevar dois…
No decorrer do Inverno, combinava-se o dia da matança. O “matador” e os ajudantes, escolhidos entre os amigos, depois da bucha ( alimento que se mete à boca duma vez) e uns copitos de aguardente, tinham a seu cargo um trabalho que, na vizinhança, não passava despercebido quer pela agitação, quer pelo berrar do porco! A nós, mandavam-nos embora, não nos queriam ali! Decerto para não atrapalharmos e para nos pouparem ao acto violento que, afinal, era inevitável. Contudo, disfarçadamente, dávamos umas espreitadelas e, víamos tudo, curiosos e condoídos, mas tínhamos que ver…
Mais uma vez a solidariedade feminina se evidenciava e as mulheres partilhavam os trabalhos inerentes a esta tarefa. Uma delas, que tinha que ser corajosa, apressava-se a colocar o alguidar de barro, com vinagre no fundo para o sangue não coagular, debaixo da cabeça do “condenado”já estendido num banco tosco de madeira. A seguir, chamuscava-se o pêlo com palha de centeio, deitava-se água, raspava-se com pedras e facas até ficar liso. Em seguida, utilizava-se o chambaril (pau curvo que se enfiava nos jarretes do porco morto ) para o abrir e pendurar, numa trave da adega. Extraíam-se as tripas e demais miudezas que, num tabuleiro de madeira, exalando um cheiro quente e fumegante, as mulheres se encarregavam de levar à ribeira para separar, lavar, virar e lavar de novo. Nestas ocasiões, levava muita água e a corrente era forte…era o que valia!
O trabalho dos homens, neste dia, estava concluído e o almoço já os esperava. Mandava a tradição e a prudência que esta refeição constasse de carne do porco do ano anterior com a qual se havia feito um apetitoso cozido com couves, batatas e chouriça.
A tarefa das mulheres prolongava-se pela tarde. Era preciso fazer as morcelas e os farinheiros: num alguidar, o sangue; noutro, o pão aos bocadinhos, noutro as tripas; um cartucho com cominhos, outro com pimentão, mais outro com colorau…em cima da trempe uma caldeira com água a ferver, ali ao lado as enchedeiras ( pequeno funil para meter o conteúdo na tripa)…a cozinha era uma confusão até que as varas do fumeiro suspendessem os enchidos.
No dia seguinte, procedia-se à desmancha. A carne era devidamente cortada de acordo com o fim a que se destinava: a que ia para a salgadeira ( espécie de arca de madeira), a que se destinava às chouriças, que ficava uns dias em vinho e alho, os presuntos, o toucinho, a que era para distribuir…era hábito oferecer, a quem se entendia, um prato com carne fresca da matança do porco: um bocado de fígado, de febra, de costela que, quem recebia e matava porco, retribuía de igual modo. Éramos nós, que pouco fazíamos e só estorvávamos, que íamos de casa em casa, contentes por dar e ser prestável.
Ter a salgadeira cheia, enchidos no fumeiro, chouriças no azeite ( para se conservarem) e um pote de barro com banha, devia ser um desafogo numa economia rural de subsistência. No entanto, nesses tempos agora tão distantes, estas conjecturas não ocupavam as nossas ideias. Pensávamos era na bexiga do porco que, depois de seca, servia para jogar a bola…

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