quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Vila Boa do Mondego - As Terças - Feiras - Anos 50/60

O Mercado semanal realizava-se, em Celorico da Beira, às Terças – Feiras e ocupava um lugar de destaque em todas as aldeias do Concelho. A manhã de Terça – Feira era para ir à Vila, havendo sempre um motivo que o justificava: vender ou comprar qualquer coisa, resolver algum problema burocrático na Câmara, nas Finanças, no Cartório ou nos Correios, encontrar conhecidos para tratar de algum assunto, saber novidades ou, simplesmente, para andar envolvido num espaço agitado tão diferente da pacatez do quotidiano. O local, completamente ao ar livre, satisfazia quase todas as necessidades desde que houvesse dinheiro o que, na maioria das vezes, nem sempre acontecia. Quem tinha jeito para regatear, lá conseguia reduzir o preço e sentir algum conforto na algibeira e na mente.
No Inverno, as tendas de lona, enfunadas pelo vento, a custo impediam que os produtos se molhassem e, em seu redor, o lamaçal alastrava…pelo pisar contínuo dos transeuntes e pela descarga da água que se ia acumulando.
Neste Mercado havia tanta coisa! Calçado, roupas, chapéus, bancas de peixe e de carne, enchidos, couves e cebolo para plantar, fruta, legumes, alfaias agrícolas…

O importante era chegar cedo. Quem possuía burro ou cavalo, mais facilmente se deslocava e transportava nos alforjes (duplo saco, fechado nas extremidades e aberto no meio) o que levava para vender e o que tinha comprado, ou seja, para a Vila seguiam galinhas, ovos, coelhos, couves, grelos, nabos, feijões, requeijões…e de lá se traziam meias, tamancas, aventais, lenços para a cabeça ou outras miudezas que fizessem falta. As mulheres, por norma, iam a pé levando na mão a seira ( cesto ou cabaz tecido de esparto, vime ou junco) com as meias de ligas e os sapatos ; encurtavam distância pelo Caminho Velho, em pequenos grupos iam conversando e, quase sem darem por isso, chegavam à entrada de Celorico. Era inevitável a paragem antes da Casa do Veloso, debaixo de umas grandes árvores, à beira da estrada, para calçar as meias, puxar bem as ligas até acima dos joelhos, trocar de calçado, ajeitar o cabelo e o lenço ou mesmo agachar-se atrás do muro, no outro lado da estrada, para fazer algo de inadiável e pessoal. Não se entrava na Vila de qualquer maneira, parecia mal: uma coisa era andar a trabalhar de sol a sol, outra era ir à Vila onde parecia que nem se trabalhava e andavam todos bem arranjados.
Também havia quem utilizasse a camioneta da carreira que se esperava à Ponte. Mas, quando já vinha quase cheia, era uma confusão! Toda a gente queria subir à força, aos empurrões e mal se ouvia a voz fininha do cobrador a perguntar:
- Vai alguém para a Guarda? Porque o bilhete era mais caro e tinha-se prioridade. Aconteceu, algumas vezes, haver quem fosse apanhar a camioneta um pouco antes da curva, fora da paragem, para garantir o lugar: a seguir ao chafariz do Eirô, subiam as escadas ao fundo do muro da Vinha da Porta, percorriam um carreiro ao lado do Paço e, já na estrada, faziam “alto”(pare!) ao condutor. Mas o revisor, apercebendo-se da esperteza, passou a cortar o bilhete como se viessem de Vila Soeiro e assim já a viagem ficava cara demais e não compensava. Para os que ficavam em terra, era um grande aborrecimento. Arrependiam-se mil vezes de não terem ido a pé, a que horas iam chegar ao mercado, àquela hora já lá estavam, porque é que não tinham sido capazes de furar pela porta, como os outros, para a semana já sabemos como fazer…enfim…não havia outro remédio a não ser meter os pés a caminho porque era Terça – Feira e havia tantas coisas para fazer na Vila!
Por volta do meio dia, o pessoal começava a dispersar, uma vez que o que era para resolver estava resolvido. Das Tabernas saía o cheiro da sopa de grão de bico e das sardinhas fritas. Os homens sentiam a garganta seca e, muitos deles, tinham que entrar para beber um copo. Mais um copo, mais uma sopa, mais um amigo e as mulheres à espera, discretamente encostadas às paredes, pois nem tinham sede nem fome. Queriam que eles saíssem depressa para irem para casa tratar da vida e evitar despesa e bebedeira. E acontecia de tudo…
Certa vez, uma mulher da nossa Vila Boa do Mondego, cansada de esperar pelo marido, foi-se embora e deixou-o ficar na Taberna, em Celorico. A meio da tarde, parou um carro de praça no largo da Venda do Sr. Pereira que transportava o dito homem que, a cair de bêbedo, a custo saiu do carro, sentando-se de imediato no banco de pedra ali ao lado. O taxista pediu a um de nós que fosse chamar a mulher para receber o frete, visto ele não estar em condições de o fazer. A mulher chegou e, compreendendo de imediato a situação, pôs as mãos na cintura, virou-se para o dono do carro e disse com a maior determinação:
- Ele que veio, ele que lhe pague!
- Mas ele diz que não tem dinheiro…
- Não tem dinheiro? E eu, onde é que eu tenho dinheiro para lhe pagar?
- Compreenda a minha situação! Eu não posso ficar prejudicado!
- Também não quero o seu prejuízo! A única coisa que há a fazer é metê-lo outra vez no carro e ir deixá-lo ao sítio de onde o trouxe!
Lembramo-nos de ter assistido à cena, como observadores atentos ao que se passava e recordamos ainda os nomes dos intervenientes que, como em citações anteriores, não queremos referir. Neste caso, foi a presença do automóvel que atraiu a nossa curiosidade e, como não existia nenhum na aldeia, corríamos atrás dos que chegavam porque alguns nunca tinham andado de carro e era divertido acompanhar este movimento, como se nós próprios neles viajássemos…

O regresso fazia-se, habitualmente, a pé. Não só por uma questão económica, mas também porque a camioneta das quatro horas era demasiado tarde. Os homens montados nos burros ou cavalos e as mulheres atrás, com as seiras à cabeça. Algumas, nunca compreendemos bem porquê, fartas de apanhar a torreira do sol no trabalho do campo, vinham, no Verão, de sombrinha aberta pela estrada abaixo…
Nós, as crianças, raramente íamos à Vila nas Terças – Feiras. A escola era um motivo válido e só esporadicamente nos levavam, mas era o suficiente para nos apercebermos das diferenças reais entre aldeia e vila, gente do campo e sem o ser e o que significava sair do nosso meio e sentirmo-nos numa outra terra onde ninguém nos conhecia nem chamava pelo nosso nome.

Esperávamos pelos nossos pais, na esperança que nos trouxessem qualquer coisa, simples que fosse, mas fora do habitual. As laranjas, pela raridade, pelo feitio e pela cor, satisfaziam sempre os nossos desejos e nunca, nunca mesmo, comemos uma que não fosse doce, docinha como o mel!

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