É difícil delimitar no tempo o universo infantil da chamada infância. Assim como não temos a noção exacta do seu começo, não temos, de igual modo, a ideia precisa do seu fim. Tal como acontece com tudo o que, ao longo dos anos, vai ganhando, na memória, as difusas dimensões de uma recordação intemporal, também o encantado mundo da infância se ajusta mal aos rígidos contornos de um tempo encaixado no frio registo dos tempos mensuráveis de um qualquer calendário.
Como se, ao fim de longos anos, quiséssemos emoldurar uma pintura que permaneceu enrolada no fundo de uma gaveta, as memórias da infância parecem ganhar a tonalidade sépia de um quadro de ficção. As cores esbateram-se, os traços enrolaram-se e, com alguma dificuldade, tentamos ordenar lembranças sempre receosos de perder o fio à meada e de misturar alhos com bogalhos. Por mais que nos esforcemos, sabemos que a realidade das coisas nunca se transmite com exactidão através daquilo que escrevemos. Relatar esse paraíso vivido ou sonhado, mas, há muito, perdido, pode, eventualmente, constituir apenas a reconstrução, em prosa, de poemas soltos que, num sopro de tempo, decorámos e vivemos mas quase sem entender e sem darmos por isso.
Não obstante, estamos convictos de termos crescido num mundo natural em que, gradualmente, fomos deixando de ser crianças. A correr à chuva ou à torreira do sol. A roer maçãs ainda verdes. A depenicar bagos de uva que ainda mal pintavam. A esconder as almofadas em que as velhas se ajoelhavam na igreja. A atirar pedras para ver quem chegava mais longe. A cortar o rabo às lagartixas. A desmanchar ninhos e a esborrachar ovos. A abrir cancelas do bardo. A fechar cães nas capoeiras com galinhas. A dependurarmo-nos na traseira da camioneta que, de vez em quando, percorria a aldeia apregoando sardinha e carapau “frescos”. A pisar a roupa ensaboada que corava estendida nas ervas. A espreitar quem se escondia para fazer as necessidades… em tudo isso, embora sabendo que estávamos sujeitos à censura da garotada mais velha e, sobretudo, dos adultos, não nos passava pela cabeça que havia uma protecção velada que nos rodeava:
- Vou-te acusar à professora!
- Vou contar tudo à tua mãe!
- Ai se o teu pai vem a saber!
Convencidos de que ninguém descobriria quem, num dia qualquer, teria tocado o sino da igreja, bebido o vinho da galheta guardada na sacristia, partido a corrente da sineta da capela, quebrado o vidro da janela da escola, esgalhado uma pernada da única tília da povoação, rachado o cântaro que esperava na fonte, deitado o fogo ao molho de lenha encostado ao forno, soltado o burro dos ciganos que acampavam no Eirô ou dado sumiço ao púcaro que sempre estivera junto à nascente…íamos desarrumando, com maior ou menor sucesso, mas com garantida emoção, o arrumado mundo dos adultos.
Habituados a enfrentar as forças da Natureza e com elas familiarizados, fomos, entretanto, dando conta das mudanças naturais que, em nós próprios, iam acontecendo. O vento, que antes soprava sempre da Serra e nos fazia correr e rir, parecia ter mudado de sentido e querer bailar dentro da nossa cabeça, eriçando-nos os cabelos e causando-nos arrepios. Um calor estranho, sem vir do sol nem do borralho, aquecia-nos o corpo, mais por dentro do que por fora. O cheiro da terra molhada demorava-se nas narinas e o perfume das rosas suplantava o dos malmequeres. O nosso olhar perdia-se nos recortes da serra, no azul do céu, no verde dos campos... a querer ser achado. Os passarinhos voavam na nossa imaginação com outras asas e melodias em que os agudos e os graves nos confundiam. O sabor das amoras silvestres e dos rebuçados de meio tostão já não saciavam a espécie de doçura que sentíamos nascer na boca. E as nossas mãos, livres para mexer em tudo, começaram a sentir-se presas a um corpo diferente que tinham medo de tocar.
Talvez o fim da infância tivesse sido uma aflição que não podíamos evitar.
Era, nas raparigas, o botão da blusa que, no meio do peito, teimava em se desabotoar ou os alfinetes-de-dama que, prendendo paninhos turcos, seguravam mal os estranhos incómodos a que jamais nos iríamos acomodar. Eram, nos rapazes, as borbulhas feiosas que escondiam o nascer medroso da barba ou o disfarce comprometido das mãos cheias de curiosidade nos bolsos das calças. Era a surpresa de um corpo humano em crescimento!
Volvido tanto tempo, damos connosco, em soledade, tentando imaginar o que teríamos pensado enquanto crianças pois, descrever memórias, é muito mais do que relatar lembranças e, repensar pensamentos, constitui, de facto, um grande bico de obra.
Talvez a razão de ser destas memórias tenha, afinal, muito a ver com essa mesma aflição que não podíamos evitar.
Procurámos refazê-las e revivê-las a nosso modo, transportando-nos a um mundo que teve a nossa dimensão, numa amálgama de vivências, sensações, emoções e decepções vividas ou sofridas por uma geração que, há mais de cinco décadas, nasceu e cresceu numa pequena aldeia da Serra da Estrela.
Do fundo de nós, emergiram cestadas de sentimentos que, caldeados com abadas de palavras, tentaram refazer, à revelia do tempo e em jeito de nostálgica despedida, a última brincadeira da nossa infância.
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