As condições de vida, proporcionadas pela labuta constante de extrair do amanho da terra dura a subsistência precária, desde há longo tempo suscitavam o desejo de partir quer para África, Brasil ou Estados Unidos ( América, como se dizia) na quimera de abanar a árvore das patacas que não chegavam a encontrar. Para o efeito, era necessária carta de chamada que, dificilmente, se conseguia. Por intermédio de familiares ou casamentos feitos por procuração, alguns conseguiram concretizar esse sonho. De terras africanas, gozando as “graciosas”( férias acumuladas), vinham famílias que permaneciam alguns meses. Impressionavam-nos os automóveis em que chegavam, alugados em Lisboa, a variedade de roupa colorida, os rolos que as senhoras colocavam nos cabelos, para parecerem mais senhoras, os empregados domésticos de que diziam dispor, as muitas festas em que participavam… e um pó amarelo que, dissolvido em leite, com um pouco de açúcar, resultava em leite-creme. Do Brasil, poucos ou nenhuns regressavam e as notícias escasseavam nos envelopes de papel fino emoldurados com riscas verdes e amarelas. Os familiares relatavam que estavam bem mas, dada a lonjura, não diziam quando poderiam vir. Sem localização no tempo, contava-se que na estrada de Fornos, nas Ladeiras, alguém da aldeia se cruzara com um homem que, sem se identificar, fora sabedor que a mulher tinha outro marido e filhos em virtude do primeiro ter falecido no Brasil. Esta estória entristecia-nos deveras ao concluir que o homem arrepiara caminho e nunca mais ninguém o vira. Na nossa interpretação infantil, baseada apenas na sensibilidade, estávamos longe de pensar nas trágicas consequências de ser morto-vivo. Da América, até o colorido do debruado das cartas era mais alegre, vermelho e azul, a condizer com novidades favoráveis que, de vez em quando, se faziam acompanhar com uma nota de “dolas”( dollars) que surpreendiam e alegravam quem as recebia. De tempos a tempos, os “americanos” vinham de visita: distribuíam, à chegada, rebuçados pela criançada, mudavam de roupa várias vezes, iam à Vila sem ser Terça-Feira e, na missa de Domingo, depositavam uma nota na bandeja de “tirar a esmola”.
O desejo latente de partir, agudizado pela agricultura tecnicamente atrasada em que cuspir nas mãos, agarrado ao cabo da enxada, continuava a fazer calos sem diminuir as miseráveis condições de vida, num regime político que insistia na preservação da subsistência do povo e na interminável guerra colonial, despertou em corpos moídos com mentes sadias a ideia inabalável de mudar de vida para mudar a vida. Sabia-se que, em aldeias próximas, outros homens já se tinham aventurado, uns presos, outros enganados pelo” passador”, mas que alguns tinham conseguido chegar a França. Era um assunto sigiloso, soprado aos ouvidos nas feiras e mercados, delicado de mais para ser abordado nas Tabernas. Era irrelevante saber as causas dessa aceitação clandestina por parte desse e de outros países europeus. A quem interessava saber as consequências da Segunda Grande Guerra Mundial, a ocupação, a destruição, a reconstrução, a falta de mão de obra…se ali, naquela pequena aldeia, noutra guerra silenciosa se combatia que, durante gerações, ninguém conseguira vencer! Sentia-se na pele e na alma, sem constar do vocabulário activo, o duplo conceito de “interioridade”: de uma aldeia serrana e de um estado de espírito traduzido em inquietação, inconformismo, revolta, ânsia de uma vida melhor.
Estávamos no início da década de sessenta. Uma manhã, bem cedo, quatro homens na casa dos quarenta anos, conversavam junto ao Forno Grande, olhos postos na estrada que à distância se sumia nas Nogueiras. Viviam da pastorícia e da agricultura, não possuíam formação que lhes permitisse enveredar noutra profissão em qualquer parte do mundo mas, confiantes na força dos seus braços, haviam de ser, na nossa aldeia, os pioneiros dessa aventura clandestina: a Emigração. Eram pessoas respeitáveis, herdados de terras, com escolaridade que, ao tempo, os diferenciava da grande maioria. Porque os actos de coragem pressupõem sempre laivos de invulgaridade. O facto de, certamente, desconhecerem a existência do Decreto-Lei Nº 39749 de 1954, que classificava a emigração clandestina como crime, terá suavizado o sentimento de transgressão de modo a não se assumirem como criminosos. Acima de tudo, era o futuro dos seus descendentes que os norteava. Um deles tinha duas filhas na escola que, desse por onde desse, tinha que pôr a estudar, para as livrar daquela “escravatura” a que, dizia, ele próprio estava condenado. Combinaram emigrar para França, “a salto”, evidentemente. Urgia procurar um “passador”, ajustar o preço, arranjar o dinheiro, marcar a data da partida. Pela calada da noite, um misterioso desconhecido entrava na aldeia para os instruir sobre o decurso da viagem, depois de ter recebido uma parte do dinheiro. Preconizava um longo e desconhecido caminho a percorrer, possíveis perigos, maldosas denúncias, omitindo sempre a PIDE, a Guarda Fiscal, os Carabineiros espanhóis, os Gendarmes franceses e demais riscos. Noite alta, quando os xailes pretos tapavam as frestas das janelas para esconder a presença tardia da luz frouxa do candeeiro e nós já nos tínhamos recolhido, o “passador” não comparecera e não mais daria sinal de vida. Havia que reiniciar o processo, confiar sem ter confiança, não poder estar de pé atrás quando tanto iam ser precisos para andar em frente.
Partiram pela calada da noite, misturados na escuridão da tristeza, da incerteza e do medo. Levavam pouco dinheiro, a roupa do corpo, uns endereços franceses cedidos por familiares de terras vizinhas…e uma dor de fugitivo no peito. Deixavam tudo: a família, os amigos, a casa, os animais, os campos, os pinhais, uma aldeia inteira… uma vida.
Quando uma carrinha fez sinais de luzes, conforme combinado, surgiram na berma da estrada, nas proximidades da aldeia e, apressadamente, foram conduzidos por um motorista que, sem fazer perguntas, os deixou nas imediações de Vilar Formoso, ao abrigo de uns arbustos, até que alguém os fosse buscar. De imediato, outros homens se apearam de outras carrinhas e se foram agachando, em silêncio, até que, perfazendo umas dezenas, foram conduzidos para passarem a fronteira a pé, ora por carreiros, ora por matagais cerrados, antes que se fizesse dia. A atribulada travessia da Espanha, atafulhados em carrinhas sem janelas e a palmilhar caminhos já trilhados ou por trilhar, alimentados a pão, água e chocolate em barra, agravada pela chuva impiedosa que os acometeu, ia enfraquecendo o corpo, o espírito e a vontade de continuar. Como em todas as grandes decisões na vida nem sempre se pode voltar atrás, nesta situação seria arriscar mais recuar do que prosseguir. Mandaram-nos esconder num velho moinho algures num monte escabroso afastado da estrada e esperar que alguém aparecesse. Acenderam uma fogueira para secarem a roupa ao mesmo tempo que, contrariando o ditado que diz que “a união faz a força”, o desânimo colectivo se individualizava. Não havia fortes nem fracos. Apenas um grupo de homens desconhecidos, cansados, esfomeados, submissos, desorientados, abandonados.
O surgimento de um jovem rapaz, ordenando que o seguissem, acentuou fragilidade, desconfiança e outros sentimentos tão negativos que, nem quando ouvíamos os relatos, nem agora, saberíamos descrever. Porém, um ramo de árvore discretamente tombado à beira da estrada, era o código que faria parar outra carrinha para outro troço de Espanha que ia sendo percorrida com rodas e pés, quilómetros em ziguezague...
Aproximava-se a travessia dos Pirenéus para entrar em França que, segundo palpites de uns e outros, se revestia de perigos redobrados quer pelo acidentado do relevo, quer pela vigilância atenta na fronteira. Em grupo reduzido, noite dentro, sem disso se aperceberem, foram informados de que já se encontravam em território francês o que, justificadamente, lhes concedeu algum alívio. A aventura da viagem terminaria em Tours, a duzentos e quarenta quilómetros de Paris. A cidade ainda dormia quando os quatro homens de Vila Boa do Mondego foram deixados à sorte, sem eira nem beira, numa rua iluminada que os amedrontou. O escuro, por norma, gera um medo desconhecido, infundado; neste caso, a claridade era prenúncio da clandestinidade visível nos rostos sofridos e comprometidos, nos trajes descuidados, em corpos ocupando um espaço errado que, ao romper do dia, por si próprios se denunciariam. Sempre que assistíamos às repetidas descrições desta proeza constatávamos ter sido este o ponto culminante da angústia, do desespero, do terror de ser preso!
A luz que se acendeu numa janela não estava “ao fundo do túnel”. Estava próxima de uma porta que se abriu e os recolheu.
Outras dificuldades se seguiram relacionadas com a língua francesa, a cultura, a integração, a discriminação, a legalização…..as saudades… ..que, sem e com remetente, iriam afogando em cartas.
Retroceder no tempo é remexer no passado. Involuntariamente, desencadeia-se um fluxo de pensamento que conduz a uma miríade de sentimentos que deixam transparecer vivências íntimas que, das profundezas do ser, se convertem em lágrimas. Implícitos nas palavras e ideias há, nesta parcela de memórias, um amor recíproco, uma dívida de gratidão impagável de desenvolvimento pessoal, humano, espiritual e cultural e … uma saudade infinita…quando um desses homens era o nosso pai.
1 comentário:
Adorei ler este texto. Imagino o sr César, teu pai, passando por uma aventura como esta...pelo que conheci dele, tê-la-ía feito no mais profundo dos silêncios,na maior parte do tempo, falando o necessário com os companheiros e muito, bastante mesmo, com os seus botões...
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