domingo, 30 de maio de 2010

Trabalho Artesanal - O sapateiro - Anos 50 / 60 - Vila Boa do Mondego

Ao escrever sobre memórias de infância, quando mais de meio século delas nos separam, acodem ao pensamento múltiplas evocações nem sempre fáceis de ordenar e transmitir. Esta transposição ao estado de criança, mergulhando no vasto domínio do subconsciente, faz emergir pessoas, os seus nomes, as suas casas, os seus trabalhos, a envolvência do viver quotidiano desta pequena aldeia serrana.

Do primeiro sapateiro dos nossos tempos, pouco nos recordamos: apenas do local onde trabalhava, numa loja ao fundo do pátio a que se acedia descendo dois ou três degraus; a mesa de trabalho e muitos pares de sapatos…este sapateiro, disso nos lembramos, tinha filhas jovens e mimosas que, para livrar da vida campesina, rumou com elas para a América. Mais tarde, outro sapateiro instalou a banca perto da escola, em frente à amoreira e nesta oficina, por observação, adquirimos os primeiros conhecimentos da arte de consertar calçado. Por norma, eram as crianças que o levavam e deixavam o recado do que era para fazer: pôr meias solas, pregar protectores ou tachas ( pequenos pregos de cabeça chata), tacões, alargar, coser, colar ou simplesmente engraixar ou substituir atacadores. Sentado na cadeirita de palha, junto à mesa baixa, pano escuro sobre os joelhos, de frente para a porta, ia utilizando os diversos utensílios de acordo com a necessidade do calçado que tinha em mãos: despertava a nossa atenção o passar da linha pela sovela e o afiar da faca numa tábua revestida de lixa, a quantidade de frascos e escovas, o pé de ferro que era pesado e, sobretudo, a enorme quantidade de sapatos, botas, chinelas, tamancos ou tarocas que, de forma ordenada, se estendiam nas prateleiras ou no chão de terra batida. Às vezes, enquanto esperávamos, tentávamos adivinhar a quem pertencia: quase sempre acertávamos pois o que ali se encontrava era utilizado para “ver a Deus”, ou seja, para usar ao Domingo e ir à vila e era sempre o mesmo anos a fio. O que deveras nos deixava intrigados não era a rapidez com que puxava o lustro, mas a saliva que, sobre o calçado, sem interromper a manobra, saía automaticamente em sucessivas cuspidelas.

Também este sapateiro emigrou para França; não porque os consertos acabassem, mas porque achou por bem arranjar outra forma de consertar a vida.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Vila Boa do Mondego - Casas - Foto Actual

                                         Vislumbra-se lá no alto
                                         mesmo ao cimo da Eira
                                         uma parede da casa
                                         onde viveu a Parteira.

A Parteira - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

No recôndito lembrar destas memórias e porque o pensar feminino tem imposições específicas, não podemos deixar de referir a missão nobre e ímpar da parteira de ajudar as mulheres da aldeia a dar à luz. Desde o princípio da gravidez que nela pensavam quando chegasse a hora, certas da sua disponibilidade e competência. Ajudou a nascer a quase totalidade da nossa geração, numa época desprovida de cuidados médicos e higiénicos em que a habilidade, a muita prática e coragem, diplomaram em nascimentos aquela a quem, popular e carinhosamente, chamávamos de Tia Virgínia. Morava no cimo do povo, no Outeiro, numa casinha modesta e a sua imagem, de velhinha, ainda guardamos com gratidão. Quando solicitados os seus serviços, sempre que a mulher grávida sentia os “primeiros puxos”( as primeiras contracções), ainda que fosse a altas horas da noite, saltava da cama, ia-se abotoando pelo caminho e corria para a mulher com dores de parto, mesmo que fosse fora da aldeia. Uma panela com água quente, uma bacia de esmalte ou de zinco, uns panos brancos e limpos, uma tesoura e um carro de linhas, constituíam os acessórios de que não precisava de se fazer acompanhar. Tudo se fazia de acordo com a sua determinação: fazer força no momento certo, agarrar-se à barra da cama ou a ela própria, abrir a boca e respirar bem, mudar de posição, acelerar a dilatação com vapor de água quente se “a boca do corpo não se abria”…ter paciência que já faltava pouco…e as suas mãos abençoadas acolhiam os seres pequeninos que, chorando, muitas vezes vinham ao mundo magrinhos e engelhados, mas que ela garantia não ter importância pois “traziam pele para encher”.

Entretanto, já outra mulher, familiar ou vizinha, preparava uma galinha gorda para fazer a canja que iria fortalecer a parturiente durante o período de resguardo. A parteira ia à sua vida sem outra recompensa a não ser a suprema satisfação de ter conseguido levar a cabo tão sublime incumbência.

Com palavras se expressam pensamentos. Estes, por se referirem ao começo da nossa existência, envolvemo-los em fraldas de amor, carinho e agradecimento às duas primeiras mulheres das nossas vidas: a nossa saudosa mãe e a Tia Virgínia.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Casas - Foto Actual - Vila Boa do Mondego


                                                             A figueira permanece.
                                        A testemunhar os factos que a memória não esquece...

domingo, 9 de maio de 2010

Trabalho Artesanal - O Tear - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Tratava-se de uma tecelagem manual que, graças ao trabalho paciente e habilidoso da Senhora Dolores, cobria de mantas de farrapos a aldeia inteira, sem contar as que iam sendo guardadas nas arcas para integrar o enxoval das moças casadoiras. Com frequência entrávamos na casa do tear, atraídos pelo ranger das peças e pela bondade da tecedeira que sempre nos presenteava com qualquer coisa do nosso agrado: figos secos, amendoins, bolachas, um quarto de trigo… fazia-nos confusão aquele aparelho de madeira, com pedais e fios por toda a parte; primeiramente, olhávamos a ver se compreendíamos e, para justificar a nossa presença, íamos ouvindo as explicações que, por serem repetidas, acabamos por decorar: a “urdidura” era o conjunto de fios tensos colocados verticalmente que definia o tamanho da peça; a “trama” era o segundo conjunto ( constituído por tiras de farrapos cortados e enrolados) que, com o auxílio de uma navete ( espécie de agulha de madeira) passava entre os fios da urdidura através de uma abertura chamada “cala”; esta, resultante da acção de uma peça denominada “pente”, permitia levantar e baixar alternadamente os fios da urdidura para a passagem da trama. Deste sucessivo e ordenado entrelaçamento dos dois conjuntos de fios, resultavam mantas e passadeiras coloridas que enfeitavam os quartos e as salas das casas da nossa aldeia. Nunca nos passou pela cabeça que alguma vez conseguíssemos exercitar esta arte mas, nos serões de Inverno, ajudávamos a rasgar em tiras as peças de roupa velha que, depois de cosidas umas às outras, se enrolavam em novelos e metiam em sacos para irem para o tear. Ali ficavam à espera de vez, sem compromisso certo de entrega. O mais importante era que as mantas ficassem bonitas, mesmo que os trapos fossem desmaiados. Para isso, contava-se com a artimanha da tecedeira que, quase sempre, trocava novelos esbranquiçados por garridos para, de onde em onde, tecer pedaços de arco-íris…

No pequeno pátio anexo, resguardado por um muro, existia uma figueira de figos pretos, como não havia outros na povoação, que atraíam o olhar de quem passava e nos desafiavam a nós…À cautela, a tecedeira escondia-os nas folhas largas que prendia com carumas. Como sabíamos isso, mais tempo nos demorávamos a olhar para descobrirmos onde estavam os figos que, solicitados com jeito, a faziam largar o tear para vir colher os que nós quiséssemos.

Escreve-se pouco, mas pensa-se muito.
Recuando no tempo, relembramos imagens, sons e cheiros, sentimentos e emoções e outras sensações que continuam indescritíveis como a de sentir o aconchego das mantas de farrapos, que quase nos tapavam a cabeça, nas noites geladas de Inverno.