Ao escrever sobre memórias de infância, quando mais de meio século delas nos separam, acodem ao pensamento múltiplas evocações nem sempre fáceis de ordenar e transmitir. Esta transposição ao estado de criança, mergulhando no vasto domínio do subconsciente, faz emergir pessoas, os seus nomes, as suas casas, os seus trabalhos, a envolvência do viver quotidiano desta pequena aldeia serrana.
Do primeiro sapateiro dos nossos tempos, pouco nos recordamos: apenas do local onde trabalhava, numa loja ao fundo do pátio a que se acedia descendo dois ou três degraus; a mesa de trabalho e muitos pares de sapatos…este sapateiro, disso nos lembramos, tinha filhas jovens e mimosas que, para livrar da vida campesina, rumou com elas para a América. Mais tarde, outro sapateiro instalou a banca perto da escola, em frente à amoreira e nesta oficina, por observação, adquirimos os primeiros conhecimentos da arte de consertar calçado. Por norma, eram as crianças que o levavam e deixavam o recado do que era para fazer: pôr meias solas, pregar protectores ou tachas ( pequenos pregos de cabeça chata), tacões, alargar, coser, colar ou simplesmente engraixar ou substituir atacadores. Sentado na cadeirita de palha, junto à mesa baixa, pano escuro sobre os joelhos, de frente para a porta, ia utilizando os diversos utensílios de acordo com a necessidade do calçado que tinha em mãos: despertava a nossa atenção o passar da linha pela sovela e o afiar da faca numa tábua revestida de lixa, a quantidade de frascos e escovas, o pé de ferro que era pesado e, sobretudo, a enorme quantidade de sapatos, botas, chinelas, tamancos ou tarocas que, de forma ordenada, se estendiam nas prateleiras ou no chão de terra batida. Às vezes, enquanto esperávamos, tentávamos adivinhar a quem pertencia: quase sempre acertávamos pois o que ali se encontrava era utilizado para “ver a Deus”, ou seja, para usar ao Domingo e ir à vila e era sempre o mesmo anos a fio. O que deveras nos deixava intrigados não era a rapidez com que puxava o lustro, mas a saliva que, sobre o calçado, sem interromper a manobra, saía automaticamente em sucessivas cuspidelas.
Também este sapateiro emigrou para França; não porque os consertos acabassem, mas porque achou por bem arranjar outra forma de consertar a vida.