quarta-feira, 28 de abril de 2010

Casas - Foto actual - Vila Boa do Mondego




Aqui se destinava o rumo:Santo António ou Soalheiro.
Na certeza de chegar, directamente, ao Outeiro.
Quis o acaso, que sorte!
Que nesta bifurcação
Aparecesse o moleiro
Dos tempos que já lá vão...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Trabalho Artesanal - A Moagem dos Cereais - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

O pão constituía parte fundamental na alimentação e era necessário providenciar para que nunca faltasse. Havia a sorte de existir uma azenha na margem esquerda do rio Mondego, bem pertinho da aldeia. O açude encaminhava a água para o moinho que fazia mover os rodízios de madeira que accionavam a mó ( pedra granítica redonda muito pesada) transformando o cereal em farinha. O moinho nunca parava. Para tal, exigia o trabalho do moleiro, todo empoeirado do pó da farinha, na recolha dos alqueires ( medida de capacidade correspondente a treze litros) do grão, de porta em porta, carregando no seu burro os sacos de centeio e de milho depois de terem sido crivados e cirandados para retirar alguma pedra, pau ou cisco. Lembramo-nos dele, o Pedro moleiro, a percorrer as ruas da aldeia, sem pressas e bem disposto mesmo que alguma freguesa se tivesse atrasado a encher o saco. No dia seguinte, nova volta, desta vez para entregar as taleigas que, destinadas à farinha, eram brancas e macias. O seu trabalho não era pago em dinheiro; ele próprio descontava a maquia que, em alguns casos, deixava as mulheres descontentes e a refilar.

Da farinha de centeio, depois de peneirada, extraía-se o farelo para engrossar a vianda dos porcos. Com a farinha de milho, em menor quantidade, preparavam-se as papas que se comiam ao pequeno almoço em vez das batatas; aquecia-se a água, dissolvia-se e mexia-se a farinha, adicionava-se um pouco de açúcar, deixava - se ferver e comiam-se antes de arrefecerem. Para nós, a pequenada, eram um castigo aquelas papas logo ao levantar da cama! Franzíamos sempre o nariz! Então, para evitar complicações e não chegarmos tarde à escola, espalhavam sobre o nosso prato umas colheradas de açúcar amarelo que, ao derreter-se, fazia carreirinhos doces que se desfaziam em toda a superfície.

Às vezes, quando íamos ao rio, espreitávamos para dentro do moinho, mas apenas registamos a ideia de um lençol branco envolvendo tudo. Como, naquela idade, só o que era visível e real prendia a nossa atenção, molhávamos os pés, brincávamos na areia e apanhávamos pedrinhas redondas que levávamos nos bolsos. Era deveras interessante quando os filhos do moleiro se juntavam a nós e, em mergulhos rápidos, apanhavam peixes nos buracos das rochas e emergiam da água funda com um peixe na boca e um em cada mão!

A nossa infância foi uma acumulação de saberes vividos que, mesmo sem utilização prática no decorrer da vida, sustentaram outros saberes e enriqueceram a nossa personalidade.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Trabalho Artesanal - O fabrico do Queijo - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

À noitinha, enquanto se fazia a ceia, o pastor entrava na corte das ovelhas para fazer a ordenha. Os rebanhos não eram numerosos, mas sempre levava tempo. De cócoras, junto de cada animal, mãos hábeis iam fazendo esguichar o leite na ferrada ( vasilha para a qual se munge o leite) ao mesmo tempo que um monólogo se ia repetindo no sentido de manter o animal quieto. A luz frouxa do candeeiro de petróleo, pendurado num pau espetado num buraco da parede, era suficiente para quem, quase de olhos fechados, executava este trabalho. O leite da noite juntava-se ao da manhã, pelo que a ferrada ficava suspensa no sítio do candeeiro. Ao romper do dia, seguia-se o mesmo ritual, antes do rebanho sair para a pastagem. Na cozinha, já há muito o lume se mantinha aceso nas frias manhãs de Inverno, junto do qual se fazia o queijo. No asado, ( espécie de panela alta com asas), já estava estendido o coador, devidamente atado nas asas, com o cardo moído à espera que o leite ali fosse despejado. Depois de mexido ficava algum tempo ao redor da fogueira até coalhar. Entretanto, a pequena mesa cujo lugar era encostada à parede, tinha sido arrastada de modo a beneficiar directamente o calor das chamas e, sobre ela, fora colocada a francela e o acincho. Sentada num banco, à altura da mesa, de mangas arregaçadas, sem outro trabalho em mente a não ser este, a mulher ia retirando a coalhada com a escumadeira e, pouco a pouco, depositava-a na francela à medida que a ia espremendo. Era um trabalho moroso e delicado em que até a temperatura das mãos influenciava a qualidade do queijo. Com a ajuda do acincho e de um pano branco, o soro acabava por sair completamente deslizando para o caldeiro para, mais tarde, depois de fervido, se comer ou fazer requeijão. À massa resultante, compacta e esbranquiçada, era dada a forma do queijo que, depois de esfregado com sal e protegido com uma ligadura, se colocava nas prateleiras a esse fim destinadas para ficar a curar durante cerca de um mês. Durante a cura, requeria viragens hábeis, lavagens sucessivas, mudança diária dos panos brancos que, alternadamente, eram lavados e corados para evitar o cheiro intenso.

Quando o queijo curado perfazia uma arroba ( quinze quilos), levava-se à feira de Celorico ou de Fornos tentando-se o melhor preço para acudir às despesas. Porém, nem toda a produção seguia para o mercado. Uma parte servia de pagamento aos donos dos lameiros pelas pastagens que durante o Inverno alimentaram os rebanhos e era pela Páscoa que a dívida se liquidava.

As nossas mãos pequeninas não tiveram permissão de colaborar num trabalho que exigia tanta mestria. Ficávamos a ver, a pôr lenha no lume, a fazer perguntas, à espera que fervessem o soro e, numa malga, misturarmos pedaços de pão centeio e umas colheres de açúcar.

O requeijão era fácil de fazer: com a escumadeira, deitava-se a coalhada nos açafates de verga, calcava-se com uma colher e deixava-se ficar de um dia para o outro. Habitualmente, não se fazia. Apenas quando se queria presentear alguém ou levar para Celorico à Terça-Feira, coberto com folhas de couve, para vender às senhoras que muito o apreciavam.

As cozinhas das queijeiras ( fabricantes de queijo), dadas as precárias condições higiénicas da época, mantinham um cheiro característico indisfarçável que se impregnava nas roupas das mulheres e denunciava a sua arte de fazer queijo.

Depressa chegava o queijo das maias; os pastos, mais que rapados, já não sustentavam o gado. Este, que todo o dia procurava comida, era forçado a comer as flores das giestas que, em Maio, proliferavam por toda a parte. Mas, o leite ia diminuindo e enfraquecendo, os queijos mais pequenos e de inferior qualidade deixavam de ter venda. Com eles se pagavam favores; outros guardavam-se para ocasiões que justificassem que fossem encetados; barravam-se com azeite e colorau para aguentarem mais tempo sem apanhar bolor. Na maioria das vezes, apanhavam um sabor picante e endureciam de tal maneira que, ao partir, as fatias se esmigalhavam e, a custo, se mantinham sobre a fatia de pão. Mas era queijo! Era assim que sempre se comia!

Naquela idade, quando comíamos daquele queijo, não nos passava pela cabeça que era o verdadeiro queijo da Serra nem que, tantos anos depois, viria a ser reconhecido com superior qualidade. Era o queijo da nossa terra, feito do leite das ovelhas que todos os dias víamos comer a erva verde dos lameiros.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A estrutura que sustentava a latada ruíu; algumas pedras  entortaram; mas ainda se mantêm estas velhas cepas que a força da natureza faz manter vivas. Bem diferente da imagem da nossa infância, faz-nos pensar no poder implacável do tempo...

Trabalhos Rurais - O tratamento da vinha - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego

Tratar uma vinha, nos anos a que nos reportamos, requeria um cuidado manual intensivo que, a bem dizer, se prolongava por todo o ano. Em Janeiro procedia-se à poda que consistia em cortar as vides que, depois de secas, eram excelentes para acender e atiçar o lume; a escava em Fevereiro e a cava em Março tinham como objectivo evitar a proliferação das ervas daninhas e aconchegar a terra ao tronco das videiras. Se, de velhice ou doença, alguma cepa secava, havia que substituí-la pelo bacelo ( vara de videira com que se reproduz a vinha) que, passado algum tempo, se enxertava cobrindo-se com terra para germinar. Por altura do S. João, quando começava a floração, tinha que se enxofrar e espalhar a calda ( mistura de água, cal em pedra e sulfato de cobre) , de quinze em quinze dias ou de oito em oito, conforme o tempo que fizesse, para acudir ao míldio, ao oídio, à podridão cinzenta…De máquina de sulfatar às costas…a mão esquerda a accionar uma gancheta para produzir pressão e a direita a segurar um tubo em que uma pequena torneira regulava a saída da calda, se percorria a vinha, videira por videira, ramo por ramo, folha por folha. Durante alguns dias, o verde tornava-se azulado
mas, se por azar, caía uma chuvada erra uma arrelia, mais uma despesa e outra carga de trabalhos! A abundância de ramagem impedia a penetração do sol sobre os cachos, daí a necessidade de se esfolhar para que todos ficassem expostos à luz solar.
A VINDIMA
Sabíamos do ditado popular “no dia de S. Lourenço vai à vinha e enche o lenço”mas, sabíamos também que as uvas eram amargosas e, até amadurarem, ainda levava tempo. Quando as abelhas e a passarada andavam à volta dos cachos e as lagartixas ficavam quietas sob as videiras, era sinal que os bagos estavam doces e, por conseguinte, maduros. Chegava Setembro. Combinava-se o dia da vindima e as pessoas mais chegadas ofereciam-se para ajudar. As mulheres, de cesta e faca, começavam numa ponta levando a eito as cepas velhas e tortas; os homens iam despejando as cestas nos canastros para serem transportados para o lagar à medida que estivessem cheios. As latadas, que normalmente cobriam os engenhos, eram vindimadas pelos homens que se encavalitavam nas pedras das guardas dos poços e, um a um, iam depositando os cachos nas mãos femininas. O acto de subir, neste e noutros casos, não se ajustava às saias rodadas das mulheres… Dias antes, já tinham sido colhidos os cachos de melhor qualidade, de uvas brancas com tonalidade amarelada de tão doces serem; destinavam-se a ser pendurados num cordel, esticado sobre a tulha das batatas, para se conservarem e comer mais tarde. Era um trabalho suave, agradável que se praticava com alegria enquanto se ia depenicando um e outro bago. A meio da tarde, as uvas estavam no lagar e o cheiro das sardinhas fritas aumentava o apetite enquanto se improvisava uma mesa com os canastros voltados ao contrário e umas tábuas a servir de assento. Encostadas à parede, no interior do pátio, as pipas e a dorna ( vasilha de aduelas, sem tampa, para pisar as uvas brancas), continuavam a embuchar. Uns dias antes, tinham sido cuidadosamente lavadas, o sarro ( restos solidificados do vinho anterior) raspado, os arcos de ferro ajustados.
Fazia-se noite quando os homens se descalçavam e arregaçavam as calças para entrarem no lagar e iniciar a pisa das uvas. Algumas vezes, por muito insistirmos, deixavam-nos entrar e, com ajuda de fora e de dentro, transpúnhamos a parede alta mergulhando os pés no líquido escuro esmagando bagos para a frente e para trás como os homens faziam. Porém, depressa davam o desejo por satisfeito e, mais uma vez, tínhamos que entender que a nossa colaboração apenas empatava o trabalho. Na verdade, o lampião na parede de granito do lagar, significava o avanço da hora, a subida do nível do sumo, grainhas e engaço, e também que era inevitável que os homens tirassem as calças e ficassem em ceroulas a que nós, evidentemente, não podíamos assistir. Naquela altura ainda não sabíamos que “até ao lavar dos cestos é vindima”; por isso, íamo-nos embora, contrariados, porque gostávamos de estar ali. No dia seguinte, antes que o mosto fermentasse, retiravam-se alguns litros, juntava-se aguardente e deitava-se num barril pequeno de castanho, de preferência, e fazia-se a jeropiga que, dizia-se, era a bebida das mulheres.

Alguns dias depois retirava-se a rolha de cortiça do buraco do lagar e transportava-se o vinho para as pipas que, entretanto, já tinham sido colocadas no lugar apoiadas nos velhos madeiros; com o auxílio de um grande funil, para que nem uma gota se entornasse, cântaro a cântaro se iam enchendo, havendo o cuidado de deixar o orifício destapado porque o vinho ainda continuava a ferver durante algum tempo. Era uma inquietação quando as pipas pingavam, sinal de que não tinham embuchado convenientemente. Era uma canseira e uma preocupação que apenas o sebo poderia resolver. Nestas circunstâncias, a vigilância era redobrada para esfregar mais sebo e despejar o alguidar que, de tempos a tempos, ia ficando cheio. E ninguém se deitava descansado sem antes pegar no lampião e ir dar uma vista de olhos, passar o dedo pelas camadas de sebo para ter a certeza de que, naquele momento, nada remanescia.

Os afazeres inerentes a esta tarefa ainda não tinham terminado. Quando o canganho (engaço), amontoado a um canto do lagar, exalava o seu cheiro característico e os mosquitos nele se amontoavam, já o alambique estava preparado, a pia ao lado cheia de água, as cavacas amontoadas ali ao canto e o pátio bem varrido para se proceder à feitura da aguardente. Fazê-la boa, tinha ciência, como ouvíamos dizer. No fundo da grande caldeira de cobre colocavam-se pauzinhos de vide para o engaço não se esturrar; o lume tinha que ser moderado e, sobretudo, haver paciência e esperar que o precioso líquido escorresse pela palha e caísse na jarra de vidro para se testar a cor. O pequeno copo de vidro, destinado a provar e definir as características da aguardente, enchia-se e esvaziava-se, de uma só vez, sempre que um amigo, ao passar na rua, era convidado para dar a sua opinião. As mulheres pouco tempo permaneciam neste local; a sua apreciação da bebida não era tida em conta e, mesmo aquelas que, por brincadeira ou não, despejavam o copo, faziam tantas caretas que nem dava para perceber até que ponto lhes sabia bem…

Quem produzia aguardente, tinha-a para o ano inteiro. Não só para beber de vez em quando nas manhãs mais frias, como para presentear um amigo, para utilizar nos bolos em ocasiões festivas, para esfregar as costas, as pernas ou os braços, desinfectar feridas e também para bochechar quando apertava a dor de dentes. Ouvíamos dizer aos mais idosos que as mulheres, nos primeiros meses de gravidez, deviam tomar em jejum uma pequena porção para matar o “bicho”.
Também as ginjas garrafais, metidas em aguardente, acabavam por adquirir uma cor acastanhada. Desafiavam a nossa curiosidade e prendiam os nossos olhares…

Há um ditado popular que diz: “trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco”. Os nossos pais, cientes do seu valor, punham-no em prática aproveitando as nossas forças e habilidades de criança que, associando aos afazeres uma componente lúdica, interiorizávamos conhecimentos e aprendizagens que haviam de perdurar a vida inteira.