Tratar uma vinha, nos anos a que nos reportamos, requeria um cuidado manual intensivo que, a bem dizer, se prolongava por todo o ano. Em Janeiro procedia-se à poda que consistia em cortar as vides que, depois de secas, eram excelentes para acender e atiçar o lume; a escava em Fevereiro e a cava em Março tinham como objectivo evitar a proliferação das ervas daninhas e aconchegar a terra ao tronco das videiras. Se, de velhice ou doença, alguma cepa secava, havia que substituí-la pelo bacelo ( vara de videira com que se reproduz a vinha) que, passado algum tempo, se enxertava cobrindo-se com terra para germinar. Por altura do S. João, quando começava a floração, tinha que se enxofrar e espalhar a calda ( mistura de água, cal em pedra e sulfato de cobre) , de quinze em quinze dias ou de oito em oito, conforme o tempo que fizesse, para acudir ao míldio, ao oídio, à podridão cinzenta…De máquina de sulfatar às costas…a mão esquerda a accionar uma gancheta para produzir pressão e a direita a segurar um tubo em que uma pequena torneira regulava a saída da calda, se percorria a vinha, videira por videira, ramo por ramo, folha por folha. Durante alguns dias, o verde tornava-se azulado
mas, se por azar, caía uma chuvada erra uma arrelia, mais uma despesa e outra carga de trabalhos! A abundância de ramagem impedia a penetração do sol sobre os cachos, daí a necessidade de se esfolhar para que todos ficassem expostos à luz solar.
A VINDIMA
Sabíamos do ditado popular “no dia de S. Lourenço vai à vinha e enche o lenço”mas, sabíamos também que as uvas eram amargosas e, até amadurarem, ainda levava tempo. Quando as abelhas e a passarada andavam à volta dos cachos e as lagartixas ficavam quietas sob as videiras, era sinal que os bagos estavam doces e, por conseguinte, maduros. Chegava Setembro. Combinava-se o dia da vindima e as pessoas mais chegadas ofereciam-se para ajudar. As mulheres, de cesta e faca, começavam numa ponta levando a eito as cepas velhas e tortas; os homens iam despejando as cestas nos canastros para serem transportados para o lagar à medida que estivessem cheios. As latadas, que normalmente cobriam os engenhos, eram vindimadas pelos homens que se encavalitavam nas pedras das guardas dos poços e, um a um, iam depositando os cachos nas mãos femininas. O acto de subir, neste e noutros casos, não se ajustava às saias rodadas das mulheres… Dias antes, já tinham sido colhidos os cachos de melhor qualidade, de uvas brancas com tonalidade amarelada de tão doces serem; destinavam-se a ser pendurados num cordel, esticado sobre a tulha das batatas, para se conservarem e comer mais tarde. Era um trabalho suave, agradável que se praticava com alegria enquanto se ia depenicando um e outro bago. A meio da tarde, as uvas estavam no lagar e o cheiro das sardinhas fritas aumentava o apetite enquanto se improvisava uma mesa com os canastros voltados ao contrário e umas tábuas a servir de assento. Encostadas à parede, no interior do pátio, as pipas e a dorna ( vasilha de aduelas, sem tampa, para pisar as uvas brancas), continuavam a embuchar. Uns dias antes, tinham sido cuidadosamente lavadas, o sarro ( restos solidificados do vinho anterior) raspado, os arcos de ferro ajustados.
Fazia-se noite quando os homens se descalçavam e arregaçavam as calças para entrarem no lagar e iniciar a pisa das uvas. Algumas vezes, por muito insistirmos, deixavam-nos entrar e, com ajuda de fora e de dentro, transpúnhamos a parede alta mergulhando os pés no líquido escuro esmagando bagos para a frente e para trás como os homens faziam. Porém, depressa davam o desejo por satisfeito e, mais uma vez, tínhamos que entender que a nossa colaboração apenas empatava o trabalho. Na verdade, o lampião na parede de granito do lagar, significava o avanço da hora, a subida do nível do sumo, grainhas e engaço, e também que era inevitável que os homens tirassem as calças e ficassem em ceroulas a que nós, evidentemente, não podíamos assistir. Naquela altura ainda não sabíamos que “até ao lavar dos cestos é vindima”; por isso, íamo-nos embora, contrariados, porque gostávamos de estar ali. No dia seguinte, antes que o mosto fermentasse, retiravam-se alguns litros, juntava-se aguardente e deitava-se num barril pequeno de castanho, de preferência, e fazia-se a jeropiga que, dizia-se, era a bebida das mulheres.
Alguns dias depois retirava-se a rolha de cortiça do buraco do lagar e transportava-se o vinho para as pipas que, entretanto, já tinham sido colocadas no lugar apoiadas nos velhos madeiros; com o auxílio de um grande funil, para que nem uma gota se entornasse, cântaro a cântaro se iam enchendo, havendo o cuidado de deixar o orifício destapado porque o vinho ainda continuava a ferver durante algum tempo. Era uma inquietação quando as pipas pingavam, sinal de que não tinham embuchado convenientemente. Era uma canseira e uma preocupação que apenas o sebo poderia resolver. Nestas circunstâncias, a vigilância era redobrada para esfregar mais sebo e despejar o alguidar que, de tempos a tempos, ia ficando cheio. E ninguém se deitava descansado sem antes pegar no lampião e ir dar uma vista de olhos, passar o dedo pelas camadas de sebo para ter a certeza de que, naquele momento, nada remanescia.
Os afazeres inerentes a esta tarefa ainda não tinham terminado. Quando o canganho (engaço), amontoado a um canto do lagar, exalava o seu cheiro característico e os mosquitos nele se amontoavam, já o alambique estava preparado, a pia ao lado cheia de água, as cavacas amontoadas ali ao canto e o pátio bem varrido para se proceder à feitura da aguardente. Fazê-la boa, tinha ciência, como ouvíamos dizer. No fundo da grande caldeira de cobre colocavam-se pauzinhos de vide para o engaço não se esturrar; o lume tinha que ser moderado e, sobretudo, haver paciência e esperar que o precioso líquido escorresse pela palha e caísse na jarra de vidro para se testar a cor. O pequeno copo de vidro, destinado a provar e definir as características da aguardente, enchia-se e esvaziava-se, de uma só vez, sempre que um amigo, ao passar na rua, era convidado para dar a sua opinião. As mulheres pouco tempo permaneciam neste local; a sua apreciação da bebida não era tida em conta e, mesmo aquelas que, por brincadeira ou não, despejavam o copo, faziam tantas caretas que nem dava para perceber até que ponto lhes sabia bem…
Quem produzia aguardente, tinha-a para o ano inteiro. Não só para beber de vez em quando nas manhãs mais frias, como para presentear um amigo, para utilizar nos bolos em ocasiões festivas, para esfregar as costas, as pernas ou os braços, desinfectar feridas e também para bochechar quando apertava a dor de dentes. Ouvíamos dizer aos mais idosos que as mulheres, nos primeiros meses de gravidez, deviam tomar em jejum uma pequena porção para matar o “bicho”.
Também as ginjas garrafais, metidas em aguardente, acabavam por adquirir uma cor acastanhada. Desafiavam a nossa curiosidade e prendiam os nossos olhares…
Há um ditado popular que diz: “trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco”. Os nossos pais, cientes do seu valor, punham-no em prática aproveitando as nossas forças e habilidades de criança que, associando aos afazeres uma componente lúdica, interiorizávamos conhecimentos e aprendizagens que haviam de perdurar a vida inteira.