Os terrenos áridos das encostas, com pedregulhos amontoados de onde em onde, apenas permitiam a cultura do centeio baseando-se, unicamente, na sementeira e na ceifa. Na primeira, dois homens bastavam: o lavrador, com a junta de bois e o arado, e o semeador com um saco ao ombro para espalhar as sementes. Havendo a sorte de não se partir nenhuma relha, devido às pedras que abundavam, num dia ou dois fazia-se o trabalho tendo em conta que não havia áreas muito extensas. E tirava-se dali o sentido e tudo ficava ao sabor do tempo, desde o crescimento à formação da seara, com sucessivas tonalidades de verde, salpicada do vermelho das papoilas, até amarelecer gradualmente e ficar seca. No fim de Junho, princípios de Julho, à saída da missa ou na taberna, marcava-se o dia da ceifa que, por troca ou à jorna, reunia um número considerável de homens e mulheres. Estas, com chapéu de palha, meias grossas e mangas compridas, procuravam proteger-se do calor do sol e das picadas dos finos caules que, de tão secos, feriam a pele; os homens, mais afeitos aos raios solares, arregaçavam as mangas das camisas desafiando o contacto inevitável, mas suportável. Os ceifeiros, em linha recta, munidos da foice ( instrumento curvo para ceifar) e das dedeiras ( pedaço de couro para proteger os dedos), curvados, iam cortando braçadas de seara que iam atando com um vencilho ( espécie de corda feita com algumas hastes) que em pequenos molhos ficavam sobre o restolho ( parte inferior do caule que, depois da ceifa, fica agarrado à terra) para serem enfeixados e levados para a eira.
O calor apertava, o suor escorria, a cantarinha de barro, passando de boca em boca, mantinha por pouco tempo a água fresca da nascente que nem sempre ficava próxima.
De vez em quando, o rastejar ondulante de uma cobra suscitava alguma agitação, mas quase sempre se escapava no meio da seara ainda por cortar; nós, a pequenada, que noutros trabalhos podíamos ajudar, neste não havia nada que pudéssemos fazer. Nem sequer apanhar o lenticão ( excrescências nas espigas de centeio) que, diziam, se vendia para fazer tinta. Mandavam-nos brincar à sombra de algum pinheiro ou carvalho mas isso era sol de pouca dura… depressa nos afastávamos para descobrir qualquer coisa, nem que fosse um lacrau debaixo de uma pedra que, de propósito, removíamos…
Ao meio da tarde, os ceifeiros, cansados, suados e espicaçados ganhavam ânimo quando alguém, em voz alta, dizia:
- Vamos a isto! Tem que se acabar para ganharmos a bicha! ( Merenda reforçada ao finalizar um trabalho). Quantas vezes, já perto do toque das Avé-Marias, se sentavam no chão para saciar a fome enquanto as bacias de arroz-doce esperavam que as colheres fossem distribuídas …nós, com o braço curto e fome de guloseimas, tínhamos direito a uma bacia mais pequena e, à volta dela, às colheradas, depressa a esvaziávamos…
Embora houvesse quem possuísse eira própria, era usual fazer a malha do centeio na eira do Outeiro, ao cimo da Quelha, numa rocha grande e plana de difícil acesso. Os molhos de centeio eram devidamente acamados, com as espigas colocadas na mesma direcção. Um grupo de homens de manguais (instrumento de malhar cereais) no ar, sincronizados no revirar e no bater, iam fazendo com que a palha se separasse do grão.
Ainda no decorrer da nossa infância a malhadeira (debulhadora) veio substituir este trabalho manual. Funcionava no Paço, onde havia espaço para, individual e sucessivamente, se proceder à debulha do centeio produzido na povoação. A máquina não podia parar: todos se ajudavam mutuamente; por um lado entravam as espigas, por outro saía a palha, de um buraco largo aparava-se o grão nos sacos de serapilheira que, quando houvesse vagar, seriam convertidos em alqueires ( medida de capacidade para cereais equivalente a treze litros, aproximadamente). As praganas ( barba de espiga de cereais) misturadas com o pó da palha, saltavam no ar, o motor fazia um barulho ensurdecedor lançando uma fumarada negra, espessa, mal cheirosa e a agitação humana, imprescindível, constituíam um espectáculo curioso propositadamente observado mesmo por quem não tinha palha nem grão.
Posteriormente, o cereal guardava-se no arcaz e, com a palha, faziam-se os palheiros para a acondicionar e proteger da chuva; colocada em camadas circulares à volta de um esteio de madeira, cobriam-se com giestas e ali permaneciam no cimo das fazendas ( terrenos cultivados) à espera de uma mão certeira que, com um só puxão, retirasse a palha sem a partir.
De nada valiam os avisos sobre os perigos de ir ver a malhadeira a trabalhar! Às escapadelas, a correr, lá íamos de vez em quando. Mesmo desobedecendo, ainda bem que fomos porque do ver ao ouvir dizer, vai uma grande diferença. Só assim, passado meio século, podemos escrever sobre o que os nossos olhos, no meio daquela poeirada, pela primeira vez observaram: a substituição do esforço humano pela mecanização.
Certa vez, que a debulhadora avariou, aparentemente sem nenhuma causa, haviam de tomar as culpas a uma mulher que, pelo facto de o seu centeio não ter entrado quando ela queria, embruxou a máquina fazendo-a parar. Foi o cabo dos trabalhos!
Nós, que já anteriormente fazíamos figas quando passávamos por ela, daí em diante ainda fazíamos com mais força, com as duas mãos escondidas porque éramos mais frágeis do que a malhadeira e era muito fácil acreditar no que ultrapassava a nossa compreensão.