terça-feira, 17 de abril de 2012

O fim da infância - Anos 60 - Vila Boa do Mondego


É difícil delimitar no tempo o universo infantil da chamada infância. Assim como não temos a noção exacta do seu começo, não temos, de igual modo, a ideia precisa do seu fim. Tal como acontece com tudo o que, ao longo dos anos, vai ganhando, na memória, as difusas dimensões de uma recordação intemporal, também o encantado mundo da infância se ajusta mal aos rígidos contornos de um tempo encaixado no frio registo dos tempos mensuráveis de um qualquer calendário.

 
Como se, ao fim de longos anos, quiséssemos emoldurar uma pintura que permaneceu enrolada no fundo de uma gaveta, as memórias da infância parecem ganhar a tonalidade sépia de um quadro de ficção. As cores esbateram-se, os traços enrolaram-se e, com alguma dificuldade, tentamos ordenar lembranças sempre receosos de perder o fio à meada e de misturar alhos com bogalhos. Por mais que nos esforcemos, sabemos que a realidade das coisas nunca se transmite com exactidão através daquilo que escrevemos. Relatar esse paraíso vivido ou sonhado, mas, há muito, perdido, pode, eventualmente, constituir apenas a reconstrução, em prosa, de poemas soltos que, num sopro de tempo, decorámos e vivemos mas quase sem entender e sem darmos por isso.

 
Não obstante, estamos convictos de termos crescido num mundo natural em que, gradualmente, fomos deixando de ser crianças. A correr à chuva ou à torreira do sol. A roer maçãs ainda verdes. A depenicar bagos de uva que ainda mal pintavam. A esconder as almofadas em que as velhas se ajoelhavam na igreja. A atirar pedras para ver quem chegava mais longe. A cortar o rabo às lagartixas. A desmanchar ninhos e a esborrachar ovos. A abrir cancelas do bardo. A fechar cães nas capoeiras com galinhas. A dependurarmo-nos na traseira da camioneta que, de vez em quando, percorria a aldeia apregoando sardinha e carapau “frescos”. A pisar a roupa ensaboada que corava estendida nas ervas. A espreitar quem se escondia para fazer as necessidades… em tudo isso, embora sabendo que estávamos sujeitos à censura da garotada mais velha e, sobretudo, dos adultos, não nos passava pela cabeça que havia uma protecção velada que nos rodeava:

 
- Vou-te acusar à professora!

 
- Vou contar tudo à tua mãe!

 
- Ai se o teu pai vem a saber!


 
Convencidos de que ninguém descobriria quem, num dia qualquer, teria tocado o sino da igreja, bebido o vinho da galheta guardada na sacristia, partido a corrente da sineta da capela, quebrado o vidro da janela da escola, esgalhado uma pernada da única tília da povoação, rachado o cântaro que esperava na fonte, deitado o fogo ao molho de lenha encostado ao forno, soltado o burro dos ciganos que acampavam no Eirô ou dado sumiço ao púcaro que sempre estivera junto à nascente…íamos desarrumando, com maior ou menor sucesso, mas com garantida emoção, o arrumado mundo dos adultos.


 
Habituados a enfrentar as forças da Natureza e com elas familiarizados, fomos, entretanto, dando conta das mudanças naturais que, em nós próprios, iam acontecendo. O vento, que antes soprava sempre da Serra e nos fazia correr e rir, parecia ter mudado de sentido e querer bailar dentro da nossa cabeça, eriçando-nos os cabelos e causando-nos arrepios. Um calor estranho, sem vir do sol nem do borralho, aquecia-nos o corpo, mais por dentro do que por fora. O cheiro da terra molhada demorava-se nas narinas e o perfume das rosas suplantava o dos malmequeres. O nosso olhar perdia-se nos recortes da serra, no azul do céu, no verde dos campos... a querer ser achado. Os passarinhos voavam na nossa imaginação com outras asas e melodias em que os agudos e os graves nos confundiam. O sabor das amoras silvestres e dos rebuçados de meio tostão já não saciavam a espécie de doçura que sentíamos nascer na boca. E as nossas mãos, livres para mexer em tudo, começaram a sentir-se presas a um corpo diferente que tinham medo de tocar.



Talvez o fim da infância tivesse sido uma aflição que não podíamos evitar.



Era, nas raparigas, o botão da blusa que, no meio do peito, teimava em se desabotoar ou os alfinetes-de-dama que, prendendo paninhos turcos, seguravam mal os estranhos incómodos a que jamais nos iríamos acomodar. Eram, nos rapazes, as borbulhas feiosas que escondiam o nascer medroso da barba ou o disfarce comprometido das mãos cheias de curiosidade nos bolsos das calças. Era a surpresa de um corpo humano em crescimento!



Volvido tanto tempo, damos connosco, em soledade, tentando imaginar o que teríamos pensado enquanto crianças pois, descrever memórias, é muito mais do que relatar lembranças e, repensar pensamentos, constitui, de facto, um grande bico de obra.



Talvez a razão de ser destas memórias tenha, afinal, muito a ver com essa mesma aflição que não podíamos evitar.



Procurámos refazê-las e revivê-las a nosso modo, transportando-nos a um mundo que teve a nossa dimensão, numa amálgama de vivências, sensações, emoções e decepções vividas ou sofridas por uma geração que, há mais de cinco décadas, nasceu e cresceu numa pequena aldeia da Serra da Estrela.



Do fundo de nós, emergiram cestadas de sentimentos que, caldeados com abadas de palavras, tentaram refazer, à revelia do tempo e em jeito de nostálgica despedida, a última brincadeira da nossa infância.

Amigos de infância - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

Envelhecemos no tempo
Ruminados de lembranças...
Num abrir e fechar de olhos
Voltamos a ser crianças...

domingo, 8 de janeiro de 2012

Mulheres - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego


Nesse tempo, as mulheres da nossa aldeia não diferiam em nada das mulheres das aldeias vizinhas. Tal como elas, as mulheres da nossa aldeia iam cumprindo, dia-a-dia e com a habitual resignação, a sua via-sacra de canseiras, obrigações, submissões e angústias, suavizada, de tempos a tempos, por compensadoras alegrias ou comedidas aspirações.

 
Porém, dada a importância da sua influência directa na nossa meninice e porque estas memórias são pensadas no feminino, é da mais elementar justiça trazer à baila o extenso rol de lembranças, imbuídas de carinho, dessas camponesas com rosto, com voz e com nome. Devotas quando rezavam, desembaraçadas quando trabalhavam, sem papas na língua quando se defendiam, desesperadas quando se enfureciam mas meigas, muito meigas, quando lhes tocavam o coração.


 
Em boa verdade, eram pau para toda a colher. Enfeitavam altares, alindavam lares, remendavam sobre remendos, coziam pão, secavam figos, faziam marmelada, cevavam porcos, faziam queijo, esmeravam-se a mexer a palha de centeio dos colchões, tiravam espinhos da garotada irrequieta com uma agulha fininha e com uma paciência de santas, consolavam tristezas de velhos e novos e pariam e amamentavam filhos ao ritmo e ao sabor das supostas leis da Natureza. Embora morrendo de medo de engravidar se o número de filhos já passava da conta, consumada a gravidez, o facto era aceite com resignação, limitando-se a fazer palpites sobre a barriga arredondada ou empinada, o pano (manchas) na cara, os enjoos ou os apetites a desoras eram prenúncios de menino ou menina. As dúvidas apenas seriam desfeitas de vez com a “leitura do escrito”, após o primeiro choro de mais um parto caseiro às mãos habilidosas e experientes da parteira da aldeia…

 
Ter um filho, era o mesmo que não ter nenhum.
Ter um casalinho, seria o ideal. A menina para pôr laços e o menino para fazer o orgulho do pai.
Se vinha o terceiro, pouca mossa fazia. Quem criava dois, criava três.

 
A partir daqui, o caso mudava de figura.

 
Mas como as noites de Inverno eram longas e frias e convidavam, muitas vezes, ao apetecido calor de um aconchego no doce ninho de mantas macias, e as noites de Verão eram quentes e abafadas e proporcionavam, por vezes, o reboliço tentador de combinações e ceroulas no desafogo excitante de uma cama com mantas a descoberto, o inevitável ia acontecendo, quase sem dar por isso. E tudo isto para já não falar no que vinha por acréscimo por causa da penumbra acolhedora de uma ou outra tarde de sesta sonolenta tão propícia, também, ao abandono de afagos e carícias fora de horas. Às duas por três, e sem nunca se saber como é que aquilo podia ter acontecido, a prole ia aumentando e, decorridos nove meses, conforme as faltas e as luas, lá vinha mais um rebento.

 
E embora de todas as vezes tenha sido uma só vez e nem sono, nem cansaço pudessem servir de desculpa, pois, por vezes, nem sequer sabiam explicar a si próprias que maluqueira lhes teria passado pela cabeça se, dessa feita, nem o homem (marido) as tinha desafiado, o certo é que lá vinha mais outra gravidez.

 
Em boa verdade, não eram os incómodos da gravidez que as afligiam, nem as dores de parto, porque tinham têmpera rija. Como de costume, confiavam piamente na experiência da parteira e no sortilégio suculento de uns bons caldos de galinha velha. Como alguém dizia, custava menos parir do que ir ao Pendão buscar um molho de lenha. O que deveras lhes azucrinava o juízo era saberem que as agruras da vida aumentariam na proporção do número de descendentes. Pobreza gerava filhos e mais pobreza. Por isso, durante as suspeitas, perdiam o apetite, andavam pálidas, tristes e pensativas. Metiam as mãos debaixo do avental, a engolir em seco pensares duros de roer. Encostadas às paredes matutavam argumentos e tentavam engendrar soluções que lhes emparedassem as vidas.

 
Era nos lavadouros da ribeira que desabafavam queixas, raivas e arrependimentos, ajoelhadas numa pedra e a esfregarem a roupa numa outra e levantando-se amiúde para aliviarem as dores nas cruzes:

 

- Foi no que deu a taberna estar aberta até altas horas da noite!

 
- Bem se diz que quem tem muitos filhos é pobre!

 
- Só queria saber como se faz para não ter mais filhos! Se alguém me ensinasse, eu passava o resto da vida de rastos, se fosse preciso, para lhe agradecer!

 
- Ora mas eu!

 
- Ainda cavei que me fartei, arrastei o arcaz, esfreguei as tábuas do soalho com quanta força tinha, tomei chás de tudo e mais alguma coisa, fiz promessas…só não fiz um desmancho porque tive medo. Que Deus me perdoe! Que, ao menos, venha são e escorreito.

 
Acodem-nos à lembrança atribulações visíveis de famílias que tiveram dez filhos. Dez bocas para alimentar, vestir e deitar em tempo de miséria o que desacorçoava as mulheres, mais dadas a extravasar penares. Com efeito, se tudo isto representava mais malgas de caldo, mais mudas de roupa gasta a cobrir corpinhos crescendo em escada, mais tarimbas, mais lágrimas, mais resignação, representava também mais cuidados e mais amor exigidos aos inesgotáveis corações de mãe…

 
E com o decorrer do tempo, à roda das fogueiras, acesas com brasas trazidas numa giesta mal seca de um lume vizinho, os bancos iam-se apertando nas cozinhas fumarentas, as panelas de ferro mudavam de tamanho, os caçoilos da resina faziam de prato fundo, os cueiros ficavam cada vez mais puídos e as camas improvisadas iam ganhando lotação. E o berço de madeira parecia ter lugar cativo junto da cantareira e, pelos vistos, não se cansava de tanto baloiçar.

 
À medida que descrevemos o que outrora observámos, os nossos olhos cansados vêem melhor para dentro do que para fora e ajuizamos que, não havendo ricos, apenas uns eram mais pobres do que outros.

Porém, faltaríamos à verdade se omitíssemos o contentamento estampado no rosto, vindo de entranhas que não geravam apenas filhos, face a comentários desafiadores:

 
- Que lindo, ranchinho!
- Com saúde, tudo se cria!
- Que Deus lhos deixe criar para uma boa sorte.
- E que os seus olhos vejam.

 
Mulheres de antigamente, autênticas Marias da Várzea do texto do nosso livro da 3ª Classe, condenadas ou condicionadas por uma ideologia destinada a formar consciências e a deformar pessoas, incentivando nascimentos e castrando vidas.

 
Às vezes, mulheres mais velhas espreitando o sol de Inverno em sítios abrigados, falavam do seu tempo. Do tempo em que, sem se quererem gabar, foram novas, bonitas, alegres, de tranças fartas, dos muitos pretendentes que tiveram, das desconfianças injustificadas dos maridos, da honradez preservada até à raiz dos cabelos, da beleza do Cabeço do Tojo comparada com a balbúrdia de Lisboa, de que ouviram falar, do encanto dos milheirais, de auroras boreais que tinham presenciado, desdenhando, a rematar, daquelas que, sem lenço, mostravam a cabeça ou encurtando as saias andavam de pernas ao léu.
As menos velhas, entretidas a desgrelar batatas ou a crivar feijões, riam-se desses desabafos, cochichavam, por vezes, com ar comprometido e desatavam a rir de novo…
E nós, para quem ouvir bocados de conversas interessava mais que a evolução dos tempos, ficávamos sem entender que relação poderia existir entre cabeças, pernas, cochichos e risadas…


Só agora, à medida que as descrevemos e se vão avivando na memória as recordações da infância, nos apercebemos das profundas transformações recíprocas que foram acontecendo entre nós e elas.

 
A vontade incontida de pôr a nu um pouco do que somos, numa dimensão colectiva de identidades, consciencializa-nos de uma fraternidade de rua, mais fácil de sentir que de expressar. E damos connosco a sonhar com pés descalços sobre a neve, lábios pintados com amoras, joelhos esmurrados, ninhos nos salgueiros, tabuadas por decorar, banhos no rio, cheias na ribeira, tortulhos com anéis, orelhas sem brincos, cerejas a pintar, mulheres a chorar e meninas grávidas de almofadas a quererem ser mães…

 
Na nossa memória, as mulheres que preencheram a nossa infância ainda perduram.. Não escreveram em prosa ou em verso, não compuseram músicas nem pintaram quadros. A sua prosa perdeu-se na terra entorroada com as sementes que não germinaram; a sua poesia enrolou-se na rodilha de trapos coloridos sob o peso do cântaro; as suas músicas foram inventadas nas canções de embalar e os seus quadros por pintar não passaram de esboços mentais de senhoras que nunca seriam.

 
A uma delas, a vida trocara as voltas. E essa falava-nos de uma cidade distante com casas altas onde as pessoas viviam às camadas, com canos onde corria água e fios que davam luz nas pontas, onde todos os dias pareciam domingos, onde não se criavam galinhas e se comiam ovos, onde não se matavam porcos e se comiam chouriças, onde não se ordenhavam ovelhas e se comia queijo. E falava de igrejas que eram mosteiros, de carros que eram eléctricos, de um jardim onde cresciam animais, de feiras onde se vendiam coisas velhas, de gente calada que se cruzava caminhando para sítio nenhum, de um rio que mais parecia um mar.
Os seus olhos azuis e tristes fitavam-nos, humedeciam e brilhavam a seguir, como se em nós vissem chuva no nabal e sol na eira. Depois, com aquela doçura infinita que Deus só concede às verdadeiras mães, abraçava-nos e beijava-nos.

 
Nessa idade tenra, em que facilmente se decora sem compreender, ouvíamos dizer:

- Cabras p’rá horta.
- Galinhas p’rá eira.
- Mulheres p’rá festa
- O diabo lhes dá pernas.

 
Entendíamos de cabras e de galinhas. De hortas, de eiras e de festas. O diabo, diziam que éramos nós, em figura de gente. De mulheres, apenas sabíamos sentir o seu pulsar na alma de um povoado onde as festas rareavam.
Porém, talvez houvesse outras festas que escapavam à nossa imaginação. Com foguetes a estoirar e anjos grandes a sorrir do céu mas que apenas as mulheres ouviam e viam do jeito peculiar que as mulheres têm de quererem, à força, ser felizes.

 
Cinco décadas nos separam dessas mulheres, turbilhões de pensamentos nos unem. E assim viveremos, em constante recordar, aliviadas por ter revelado que, por mais voltas que dermos na vida, continuaremos a ser camponesas disfarçadas que ainda se apoquentam com a queima das geadas.



Chafariz do Outeiro - Foto Actual - Vila Boa do Mondego


                                           O chafariz do Outeiro
                                           Com sua missão cumprida
                                           Vai pingando saudades
                                           Do tempo em que teve vida.