quarta-feira, 15 de junho de 2011

Doenças - Anos 50/60 - Vila Boa do Mondego


Nesses tempos em que o tempo se media mais pela luz do sol do que pelos relógios escassos que mais serviam para enfeitar, havia pouco vagar para estar doente. A prevenção das doenças fazia-se intuitivamente e o mais importante era não ter fastio e dar dois ou três arrotos depois da refeição para haver a certeza de que estava a fazer bom proveito. A variedade de alimentos que a terra dura produzia encarregava-se de fortalecer o corpo que, pelas energias dispendidas, se negava a acumular gorduras. A comida requentada, fosse soro, batatas, caldo, feijão, favas ou grão, mesmo à ceia, se digeria e, se durante a noite causasse alguma azia, não era coisa que tirasse o sono a corpos moídos. O dizer presunçoso de um cavador afirmava que tinha um estômago tão rijo que, se as comesse, até pedras desfazia…

Não obstante, quando os males apareciam, porque ninguém era de ferro, as interpelações surgiam imbuídas de enigmas profanos e sagrados levando à ponderação sobre a finitude de quem padecia.

Quase sempre sem explicações plausíveis, ocorriam mazelas que a sabedoria popular dos mais velhos se encarregava de tratar. As dores nas cruzes, o reumático, a ciática ou a espinhela caída eram fruto do tempo ou de mau jeito que uns panos quentes ou o dependurar numa porta acabavam por sanar. Os resfriados, por norma, eram causados pela frieza das águas dos poços, nas regas de madrugada ou pela chuva enxugada na roupa das costas quando não havia cabana que servisse de abrigo. Nada de monta, que uma caneca de aguardente e uma suadela debaixo do cobertor de papa, numa noite, não resolvesse. As constipações, no longo Inverno, com tosse e espirros, eram mais más de aturar. O ranho no nariz obrigava a andar sempre com lenço no bolso, enrodilhado e pegajoso, sem ter ponta por onde lhe pegar. Os homens ajeitavam-se a tapar uma narina e a expelir, para o chão, as secreções. Mas, o avental das mulheres, se bem que aparasse os pingos do nariz, não contemplava uma constipação a sério. O mais incomodativo era, na verdade, durante a missa de Domingo quando, a meio do sermão ou a erguer a Deus, os ataques de tosse afluíam e se propagavam sem parar. Os olhares desviados, concentrados nos rostos congestionados e envergonhados, geravam mal-estar a ponto de, embora contrariada por perder parte da missa, uma velhota que sofria de asma, volta e meia ter que sair para o adro para tossir e esvaziar os canais. Quando a tosse abrandava, e retomava o lugar, sussurrava para ambos os lados, no banco corrido e apertado, o possível motivo do achaque, as colheres de mel que já tinha tomado no chá de casca de cebola com aguardente e tudo e que, na cama, durante a noite, ainda era pior, com febre e suores frios.

As dores de cabeça e de barriga eram mais propícias às mulheres que, para além do incómodo, sabiam que o mal e o bem à face vem. Deitavam mão aos taleigos onde guardavam as ervas milagrosas, secas à sombra durante o Verão: as barbas de milho, a tília, as flores de sabugueiro, a erva cidreira, a erva de São Roberto, os poejos, a hortelã, os pés de cereja e aos pachos ( panos embebidos num líquido) que faziam sempre bem. Da comichão feminina e líquidos amarelados e mal cheirosos a ponto de se ter de usar calças (cuecas) todos os dias, só em segredo se faziam queixas e se aconselhava a lavagem, por baixo, com água fervida com malvas que em qualquer canto se apanhavam. Fosse pelas qualidades terapêuticas da planta, fosse pela limpeza a fundo, o ardume ia passando e reaparecendo e cada um sabia de si e Deus sabia de todos. Recomendava-se, no entanto, usar meias nos dias do período menstrual, mesmo em pleno Verão, pois convinha haver resguardo. Ir ao médico estava fora de questão. Era o que mais faltava! Mostrar as partes íntimas a um homem se nem os maridos nunca as tinham visto nuas! Casos houve em que a honradez degenerou em mal ruim e nem os médicos da Guarda e de Coimbra lhes atalharam o mal.

As dores de dentes sobressaíam pelo inchaço da face e não havia bochecho de aguardente que as detivesse. O lenço da cabeça, nas mulheres, atado atrás do pescoço, sempre aconchegava e disfarçava um pouco, mas atrapalhava o falar. Adiava-se o arrancar, à espera que passasse, não pela falta dos dentes, mas pela dor, a sangue frio. Na aldeia, ninguém se atrevia a isso e o dentista, em Celorico da Beira, tinha uma cadeira, alicates e a mulher que, agarrando quem se sentava, fazia de anestesia. Mais importante que ter muitos dentes, era ter em que dar ao dente.

Os furúnculos, mais frequentes nos homens, apareciam no pescoço, nas costas e nádegas, para não falar das virilhas, com sinais evidentes de infecção e sabíamos serem dolorosos por ouvirmos dizer, se bem que dos carbúnculos ( aglomerados de furúnculos), dissessem não se desejar ao pior inimigo. Era feio de ver, aquele montito de carne avermelhada coberto de pus que, quase sempre, tinha que ser espremido ou lancetado e deixava cicatriz.

As feridas provocadas por espinhos, queimaduras, mordeduras de cães ou infecções ligeiras, lavadas com sabão azul e desinfectadas com álcool ou vinagre depressa criavam crosta, com a ajuda da sugestão de que o que ardia curava. A não ser as da Ti Maria da Luz que, besuntadas com petróleo e enfaixadas em jornal, pioravam a olhos vistos. A culpa foi da panela de ferro que fervia ao lume que, por ter só duas pernas e meia, lhe havia de causar tais trabalhos quando se virou e lhe queimou as mãos.

Para as nódoas negras provocadas pelo sangue pisado, o remédio vivia dentro de um frasco e suscitava a nossa apreensão sempre que a senhora Maria Gomes se prontificava a fazer o curativo a quem dele necessitasse. Cuidadosamente, colocava uma sanguessuga sobre a parte arroxeada e esperava que a bicha inchasse e a pele clareasse. Nós, a garotada que acudia às soleiras das portas, balcões de granito e outros sítios onde houvesse gente, dava fé de tudo. Olhávamos, de boca aberta, sentíamos arrepios e encolhíamo-nos a desejar que nunca, em parte alguma do nosso corpo, nenhum ser vivo nos sugasse. Nessa idade, em que só a dor física existia, não poderíamos sequer imaginar que havia também as dores da alma e que esta podia ser mordida e sugada, esfrangalhada, a verter o sangue que não tinha.

Ainda bem que, de tempos a tempos, passava pela aldeia aquele homem de saco às costas, a apregoar “ quem merca as bichas”! Na ribeira também as havia, mas deviam ser preguiçosas ou ter outro defeito qualquer pois, dizia-se, utilizá-las para o efeito, não adiantava nada.

Casos mais graves, como hérnias, apendicites, úlceras no estômago que faziam vomitar borras de café, surtos de tifo, ataques repentinos ou aqueles casos de se cair redondo no chão, iam parar ao Hospital de Celorico da Beira ou da Guarda. A notícia espalhava-se e a obrigação de visitar os enfermos fazia largar os afazeres. Como não se podia aparecer na hora da visita com as mãos a abanar, compravam-se bananas e bolacha maria que cobriam o tampo da mesinha de cabeceira do quarto do Hospital. Algumas vezes nos levaram. Nos corredores, o silêncio impunha-se em cartazes com dedos indicadores colados a bocas fechadas, portas abertas deixavam ver camas alinhadas e cabeças despenteadas.

- Se procuram alguém da Jejua, é ali.

Não gostávamos, já ninguém vivia na Jejua, mas sabíamos que a gente de Celorico nunca nos perdoaria que o nome da nossa pequena aldeia começasse por Vila.

Refinava o cheiro estranho que as nossas narinas desconheciam. A cor branca dominava tudo, como os nevões de Inverno: as paredes, as portas, as camas, os lençóis, as colchas, as enfermeiras e até os rostos dos doentes nos pareciam esbranquiçados…A única pincelada colorida que deveras prendia o nosso olhar, eram os vários verdes das bananas, algumas já amarelas e com pintas castanhas e as cores dos pacotes cilíndricos das bolachas. De nada mais nos lembramos a não ser de uma voz alquebrada a dizer:

- “Dêem-nas às crianças, acabam por se estragar”…

A fruta variada que comíamos, maçãs, peras, ameixas, figos, pêssegos, cerejas, amoras, morangos, uvas, melão e melancia, não saciava a nossa fome de bananas que, por serem compradas, rareavam como as bolachas. Constatamos depois, com o passar do tempo, que há fomes más de passar e, ainda hoje, meio século volvido, as bananas que comemos ou não queremos comer se assemelham aos desejos adiados que nunca mais são satisfeitos…

A pequenada foi corrida a eito com surtos de sarampo e varicela que, por se pensarem só à flor da pele e inevitáveis nessa idade, não davam cuidados de maior. No primeiro caso, a vermelhidão do corpo era tapada com um pano vermelho e metiam-nos na cama, ao escuro, durante alguns dias. A febre pouco incomodava, mas era um suplício permanecer assim horas a fio! Às escapadelas, sem ninguém em casa, saíamos da cama e espreitávamos pela janela até sentirmos o ruído dos gonzos da porta…

A varicela, com aquelas erupções avermelhadas, pintalgadas com mercurocromo, dava-nos um ar apalhaçado mas fazia uma coceira de morrer! Quanto mais nos diziam que coçar deixava marcas, maior era a comichão…

O trasorelho ( papeira), constituía, nos rapazes, um problema sério que, caso descesse, podia comprometer o desempenho sexual na vida adulta e obstar à descendência…

Aparentemente inofensivas, eram as lombrigas que facilmente sucumbiam a umas goladas de chá de erva dos burros que cresciam junto aos muros; assim como as diarreias que rapidamente eram controladas com umas colheres de farinha dissolvidas em água com um pouco de açúcar que bebíamos com agrado.

Aos piolhos e camadas de lêndeas ninguém escapou. O primeiro alerta vinha da escola, quando a mão direita escrevia e a esquerda enfiava os dedos na nuca, sítio onde os parasitas achavam melhor cama. O pente duplo, impotente para retirar a criação, deixava que fazer às mães que tinham que catar os filhos um a um. Mas nós achávamos graça, riamo-nos e virávamos a cabeça, de olhos fechados, no colo das mães.

Como vai longe esse tempo!

Os piolhos voaram, não gostam de cabelos brancos…mas continuamos a sentir, junto à raiz dos nossos cabelos, as mãos mais meigas da nossa vida…

Atrevemo-nos a chamar doença às tareias que algumas mulheres levavam e as obrigavam a ficar de cama, com cabeças partidas, cabelos ensopados em sangue e nódoas negras pelo corpo. Ouvíamos na rua o espalhafato e os gritos resultantes de vinho e maldade. Esperta foi a mulher de um tal fulano que, já entrado na idade e só pele e osso, mas viciado em aguardente e mau de aturar, caiu à cama. Ali permaneceu bastante tempo, sem nunca lhe faltar a garrafa à cabeceira. Certa vez, a mulher, ao dar os pêsames a outra que acabava de ficar viúva, teve este desabafo:

- “Você já está descansada, já o lá tem…agora eu”…

De outras enfermidades encobertas algumas pessoas se julgavam acometidas como justificação dos azares da vida. Perdida a esperança nas mezinhas caseiras, por de dores físicas não ser o caso, havia que atalhar o mau olhado, os males de inveja ou o quebranto. Preparavam-se os defumadouros com algumas ervas aromáticas, sempre em número ímpar:

. Cinco grãos de sal.

. Cinco bocadinhos de alecrim.

. Cinco pingos de azeite.

Espalhava-se tudo sobre brasas, para fazer fumo. Em seguida, benziam-se e diziam a reza apropriada:

“ Eu te defumo para o mal te tirar e Nossa Senhora fumou o seu amado Filho para bem cheirar. Pai Nosso e Avé Maria.”

“O alecrim é bento, o alecrim é santo. Assim como é bento e santo, tira as pragas da inveja, agouro e quebranto. Dois o deram, três o tiraram e são as três pessoas da Santíssima Trindade. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Pai Nosso e Avé Maria.”

Em recolhimento, à luz ténue da candeia, as mulheres iam repetindo as rezas a olhar as brasas que se iam transformando em cinza e o vazio do fumo que já tinha desaparecido.

Poderemos desconhecer em nós marcas doentias vindas da infância que, de algum modo, tenham condicionado os nossos comportamentos ao longo da vida. Do que não duvidaremos jamais é desta necessidade premente que, de corpo e alma, nos faz recuar no tempo, reviver tudo e querer voltar a esse mundo maravilhoso da infância a que o tempo nos fechou as portas.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Rio Mondego - Foto Actual - Vila Boa do Mondego

Águas do Rio Mondego
Passam a vida a correr
São como o tempo da infância
Que nada pode deter...