No tempo da nossa infância, de acordo com os escrúpulos da época, as brincadeiras eram diferenciadas e vividas no masculino e no feminino. Embora se brincasse em casa nos dias chuvosos de Inverno, a embalar bonecas que não fechavam os olhos, às alunas e professoras que fingiam dar reguadas, a preparar merendas com pão e condutos que estivessem à mão, era na rua que dávamos asas à imaginação e em qualquer recanto ou balcão de granito improvisávamos casinhas onde as pedras faziam de móveis e os cacos de barro utensílios domésticos. Dos buracos das paredes arrancávamos capilos, do chão apanhávamos serralha, beldroegas e dentes de leão que, misturados com terra e água, depois de tudo bem mexido, chamávamos comida como se de um manjar se tratasse. As personagens, definidas de acordo com a idade e capacidade de liderança, reduziam-se a “mães” e “filhas” omitindo-se a ausência da figura paterna que, numa justificação simplista, poderemos atribuir à ausência diurna do masculino na vida doméstica. Havia ainda um plural diversificado de bonecas: as matrafonas com corpos de peúgas cheias de trapos, cabelos de lã e olhos de botões, as feitas de giesta com cabeça de bogalho( fruto do carvalho) e as de papelão, compradas nas feiras, de lábios pintados e olhos azuis…estas, meninas grandes em miniatura, por terem custado dinheiro e terem a faculdade de se sentarem, raramente integravam as nossas “famílias”permanecendo quietas, de braços abertos, a enfeitar arcas ou cadeiras…não eram para brincar, não se fosse esfolar o rosado das faces.
De forma mais ou menos cíclica, os vários entretenimentos iam tendo lugar no decorrer do ano. Nos dias de calor, à sombra das casas ou debaixo de uma árvore, jogava-se ao lencinho, à cabra-cega, ao anelzinho, aos quatro cantinhos, ao bom- barqueiro, às pedrinhas trazidas do rio e à péla na altura da Páscoa. Ao tempo frio eram destinados jogos mais movimentados como a macaca, as escondidas, a apanhada, saltar a corda…e quando a liberdade de movimento superava qualquer organização lúdica, corríamos pelas ruas, de braços abertos empurradas pelo vento …na ilusão crescente de podermos voar.
A energia dos rapazes era dispendida a jogar à bola, independentemente da época do ano. Surgia sempre uma bola de trapos que, com a mínima organização futebolística, suscitava uma correria para a pontapear e fazer passar por entre duas pedras com alguns palavrões à mistura. Era uma sorte a textura da bola para os pés descalços...
Obedecendo a um imperativo desconhecido, chegava o tempo de correr nas andas, jogar o arco, a chôna, a malha, o pião. Os mais habilidosos faziam as baraças com linhas de algodão tiradas dos açafates das mães. Vários fios esticados e torcidos nas extremidades, em sentido contrário, transformavam-se na guita mágica que, enrolada com mestria no pião, o fazia rodar e rodopiar no terreiro. E nós, as meninas “mães” e “filhas”, íamo-nos aproximando sem tirar os olhos dos piões às voltas, à espera que um dos rapazes colocasse na nossa mão um deles em movimento para sentirmos aquela sensação estremecida que nos percorria o corpo a que, a morrer de riso, chamávamos cócegas.
Éramos fazedores de brinquedos. Da casca dos pinheiros saíam carrinhos de bois, da madeira dos carvalhos nasciam cancelas, picotas e arados, dos ramos de amieiro surgiam flautas, de um galho qualquer se faziam fisgas, de uns troncos unidos se improvisava um carro…com ramos de árvores se ajeitava um tecto, de umas pernadas de giesta uma vassoura, de pedaços de barro surgiam pratos que o sol nunca cozia, de sacos grávidos de trapos nasciam bonecas e mudas de roupa, com pinhões e linhas fazíamos colares, dois pés de cerejas unidos transformávamos em brincos e de ramos de malmequeres do campo armávamos coroas…
Porém, era nas brincadeiras sem nome que soltávamos a gana: fechava-se a cabra juntamente com as galinhas, atavam-se latas às caudas dos cães, puxavam-se os rabos dos burros, roubavam-se chouriças do fumeiro, saltávamos sem parar nas camas de giestas e palha feitas de novo nos currais das ovelhas, apanhávamos boleia nos carros de bois sem o lavrador se aperceber, corríamos à volta dos poços até ficarmos tontos, bebíamos água das chuvas nas covas de barro, fazíamos soveiro ( estragos com os pés) nas sementeiras, apanhávamos flores no adro da igreja, derretíamos a neve com líquido amarelado expelido pelo corpo. Evidentemente, ralhavam connosco. Mas, porque estas proezas nos estavam na massa do sangue, alternavam com repreensões em que sempre a palavra malhadiços vinha à baila.
Assim fomos crescendo, adquirindo livre e espontaneamente, noção de espaço, lateralidade, equilíbrio, coordenação motora, autonomia, segurança e outras que, num contexto de socialização de rua de aldeia, decerto nos fizeram felizes e contribuíram positivamente para o nosso desenvolvimento pessoal.
Brincámos, brincámos muito. Arranhámos as mãos, golpeámos dedos, ferimos os joelhos, fizemos galos na cabeça, entalámos dedos nas portas … imaginámos e inventámos tanto… como se pressentíssemos que, depois da infância, as brincadeiras seriam condicionadas pelo tempo, pela responsabilidade e circunstâncias e por nós próprios… e tivéssemos de imaginar e inventar outras que ludificassem a vida.