Escrever sobre a infância é fazer uma análise retrospectiva contemplando vivências num emaranhado de sentimentos mergulhados num mar sem fundo, como se ainda permanecêssemos debruçados nas guardas dos poços dos lameiros da ribeira, a olhar a nossa imagem reflectida naquelas águas paradas. É um nunca mais acabar de recordações que, numa visão holística do que somos, causam a sensação de algo que se perdeu e, a muito custo, queremos reaver, como quando o pequeno chapéu de palha, atado às três pancadas, nos caía da cabeça e ficava a boiar à superfície…mas que, para suprir a falta e acalmar o desgosto, qualquer varela, à mão de semear, trazia de volta.
Nenhuma pretensão ostentamos acerca dos múltiplos significados e características do amor. Ficaremos pela existência de um vínculo emocional entre pessoas que, de acordo com o seu carácter individual, sustentará comportamentos que, sem serem nada do outro mundo, podem revelar a existência de um mundo em que o bater das asas das borboletas em nada interferiria com as leis do universo.
Assim como a Natureza se encarregava de fazer florescer na Primavera, também a idade da mocidade fazia desabrochar corpos e espíritos com as garotas e os rapazitos a deitar o cabelo e a medrar a olhos vistos. De magricelas e enfezados iam ganhando carne, de modo a aparentar formosura e força. Tudo passaria a ser diferente, no pensar e no agir: a ida à fonte, à missa, à horta, à Vila, o vestir, o pentear ( as permanentes eram quase obrigatórias), o mostrar às claras saber bordar, costurar e tricotar. Carregar sacos de batatas às costas, varejar as oliveiras mais altas, cavar num dia o que dois homens não cavavam em dois, carregar sozinho um burro ou um cavalo, rachar troncos de carvalho sem precisar de guilhos, saber fartar o rebanho quando a erva já estava rapada…eram vaidades a cultivar.
O tempo, operador de mudanças, dificilmente se compadecia em acalmar os ímpetos mais naturais no ser humano e nele se delegava uma parte da resolução do problema, com ânsia de boa sorte. Ficarem noivas antes dos vinte anos para se livrarem das bocas do povo e precaverem o amanhã era um sossego desassossegado para as moças casadoiras e um alívio para as mães.
Para trás, ficavam os bilhetes da escola, com letras certinhas, sem borrões de tinta, escritos às escondidas, entre ditados extensos e confusos e problemas do Mil Cento e Onze que obrigavam a trocar coelhos por galinhas. Mensagens lacónicas do despertar dos sentidos. Sem explicação plausível, a medo se entregavam ou se amarfanhavam no fundo da sacola, as primeiras expressões de amor que, silenciosa e inocentemente, de nós brotavam:
- Gosto de ti.
- Gosto de ti.
Como as décadas alteram tudo! O que fomos afunda-se no que somos, o que sentimos tem outro sentir e até a inocência questionamos por pensarmos que a intimidade revelada pode manchar a pureza de sentimentos. Mesmo assim, sabe bem reler aquelas três palavras, pensá-las baixinho e, com a timidez da infância, querer dizê-las a alguém…
A sabedoria popular dizia que, quem fora da terra fosse casar, ou ia ser enganado ou ia enganar. Porém, havia de ser a terra a origem de amores e desamores, de casamentos feitos e desfeitos, de consentimentos familiares e zangas para toda a vida, de arrependimentos, vinganças e mortes. Para quem não tinha onde cair morto, nenhum dilema existia, tudo se resolvia juntando a fome com a vontade de comer e o amor e uma cabana estavam justificados. Mas para quem possuía dois palmos de terra, duas aspirações norteavam o destino dos seus, tentando desmentir o velho ditado de que “ o casamento é uma carta fechada”: arranjar alguém que também tivesse terras ou encontrar quem das terras os livrasse para sempre. Ter quintal ali à mão com água de nascente para ter renovo fresco, pinhal com resina, lenha, pinhas e mato, terras de semeadura e pastos para o gado, oliveiras e uns cordões de videiras eram heranças futuras que enriqueciam o presente, descurando-se, em alguns casos, diferenças de idade e laços de parentesco esquecidos pelo arrancar de marcos que aumentavam courelas e prestígio.
Mais ousado ainda seria o propósito de um casamento - passaporte que abrisse fronteiras para outros viveres, que substituísse as cestas de verga por malinhas de mão e arrumasse de vez com as enxadas.
As “cartas de amor” davam um jeitão! Viessem do Brasil, da África, da América, do Canadá ou mesmo de Lisboa. Fosse para casar de verdade, na igreja da aldeia, ou por procuração, com o pai a fingir de noivo, cartas para cá e para lá eram prenúncio de felicidade. Dava gosto, ver a avidez com que as raparigas agarravam essas cartas, na Taberna do Sr. Pereira, à hora de ler o Correio, sem se aperceberem do desgosto de quem as não tinha.
Dizia-se não haver panela sem testo, mas aconteceu, em ambos os sexos, quem ficasse por casar: por esquisitice, para tal não ter sido talhado ou porque Deus assim o quisera. Algumas solteironas ainda se desforraram no tempo do minério que atraiu à aldeia homens que ganhavam bem. Outras, cada vez mais fora de prazo, iam inventando desculpas esfarrapadas para a sua castidade forçada, acabando por rematar que tinham tido sorte por nunca terem aturado homem nenhum. Conformadas ou não, eram frequentadoras assíduas dos actos religiosos e encabeçavam a lista das chamadas beatas falsas, com a postura certa de quem muito tinha a penitenciar na convicção de que, em pensamento, também se podia pecar.
Acerca dos homens que não casaram, algumas peripécias ouvíamos: de um que, por falta de altura e jeito, não era capaz de aparelhar o burro e que, para o montar, tinha de o meter num valado, sem ser visto, de nada lhe valendo ter-se pavoneado pelas aldeias próximas; de outro, alcunhado de Xico Burro que, dizendo-se o homem mais rico da terra, vivia o amor solapado de casar com uma professora e fazia questão de ser tratado por milionário. Divertido mesmo era o caso do Tomás. Volta e meia, ou por falta de assunto ou por vontade de brejeirice, à hora das merendas, lá vinha à baila o fracasso amoroso que a sós vivera. Embeiçado por uma jovem escorreita, a quem nunca poderia encher as medidas, escondia-se atrás das oliveiras do Malvar para lhe falar dos seus intentos, da melhor forma que sabia e a gaguez lhe permitia:
- Inda elas bei cheitossa…ma figeste-te um coilãocito!
- À coilãocito…coilãocito…
Era risada geral, prolongada pela repetição propositada de quem sabia que fazer rir era uma mestria. Achávamos tanta graça que, volvidos tantos anos, não nos atrevemos a modificar o dito para não lhe tirar a graça pois, para bons entendedores, é quanto basta. Acabou por encontrar parceira, já a destempo. Velha, trôpega e sonsa a quem, segundo ele próprio dizia, por mais que se esforçasse, não conseguia fazer um filho.
Solteiro até morrer ficou o ti Jaquim! Avesso a qualquer tipo de mudança, limitava-se ao estritamente necessário para viver como se, deliberadamente, quisesse parar no tempo ou percorrê-lo de marcha atrás. Cortava na casaca de quem, para melhorar as condições de vida, comprava camas de ferro, mesas e cadeiras, armários e outras cangalhadas sem préstimo.
- P’ra que “querendes” o guarda-livros? Perguntava categórico, em casa de familiares, olhando-se no espelho de um guarda-vestidos que, por não caber nos quartos, enfeitava a sala.
- Se juntassem o dinheiro para comprar terras é que tinham juízo! É a única coisa que tem valor!
- De que adianta pôr os filhos a estudar? Alguém deixa os estudos como herança?
Acendia o lume para se aquecer e assava nas brasas bocados de bacalhau ou chouriça enrolada numa folha de couve para aconchegar o estômago que ficaria composto com umas copadas de vinho. Com as uvas da Ladeira e as azeitonas do Cabo enchia as pipas e os potes tendo com que alumiar a goela e a candeia. Era na adega que passava grande parte do tempo, já que de afazeres e compromissos se sentia liberto e disponível para a cavaqueira com quem por lá passasse:
- Vai uma pinga?
- Ia mesmo a calhar!
E calhava cada vez melhor, à medida que iam escorropichando os copos para os encher de novo debaixo da torneira que, mesmo fechada, teimosamente pingava.
Às vezes, alguém interrompia estas euforias etílicas, mas nem Baco se importava. Era a Carma Plainas que, de tempos a tempos, visitava a aldeia e impunha um desrespeito que apenas o ti Jaquim apreciava. Retemos, marcadamente, a imagem dessa mulher, vinda não sabíamos de onde, por não termos mão no que a memória armazena: grande, escanzelada, olheiras fundas, cabelos negros emaranhados, roupa de cidade amarrotada, saltos altos tortos e esfolados e beiços espintaçados de vermelho, a cambalear e a falar sozinha, da taberna para o ti Jaquim!
Amparavam-se para atravessar a rua, para entrar no curral da burra, para subir para a tarimba. Não paravam de se amparar…e mais não sabíamos. A nossa curiosidade tinha limites, o escuro era impenetrável mesmo com a porta escancarada. A burra, juramos a pés juntos, nunca revelou nada a ninguém.
De ideias avançadas era a rapariga que vivia perto da capela de Santo António. Fosse pela influência do Santo, fosse pelo sangue quente que lhe fervia nas veias, desinquietava forasteiros e residentes. Sem ser linda de morrer nem feia de meter medo, era bem- feita de corpo, agradável no trato, sabia cativar as pessoas. A falar, ninguém a levava presa. Gostávamos dela. Quem mal não tem, mal não pensa, independentemente de encantos ocultos que nos passavam ao lado juntamente com tudo o mais que as más- línguas diziam. Quem vivia em constante sobressalto era um resineiro das bandas de Mangualde que, ao longo do ano, passava para marcar e sangrar os pinheiros, vazar os caçoilos da resina, substituir os que se iam partindo ou, simplesmente, para marcar presença nos pinhais e posse no amor. Tranquilizava-o o facto de ter, na aldeia, um amigo de confiança com quem não tinha segredos, a quem insistentemente rogava, antes de se ir embora:
- Não tires os olhos de cima dela! Tem a certeza de que é só minha e tua! E de mais ninguém!
Os rapazolas da aldeia, inexperientes na arte de resinar e noutras artes, andavam rua acima rua abaixo, rondavam a capela, sentavam-se debaixo do freixo, numa agitação crescente e descontrolada, desencadeada pela seiva da juventude. As mulheres, danadas, diziam que era uma vergonha; os homens, malandros, achavam que era uma boa recruta. E nós, que íamos deixando de ser crianças, já tínhamos o devido entendimento para não meter o bedelho.
Com as asas da infância, sobrevoando partes recônditas da alma das gentes da nossa aldeia, quisemos descrever atitudes, emoções, decepções e talvez amores, conscientes da subjectividade em que qualquer pensamento escrito pode incorrer.