Nos tempos distantes da nossa meninice a palavra vestuário ainda não estava na moda nem esta influenciava a maneira de vestir de ninguém. Havia a preocupação, no Inverno, de se aconchegar o corpo às combinações e ceroulas de flanela que, para não arrefecerem, se usavam dia e noite. A roupa de vestir, propriamente dita, não se alterava com as demais estações do ano a não ser o complemento dos xailes pretos de lã ou das samarras com gola a imitar pele, somente usados em situações especiais de descanso. Numa época em que as dificuldades económicas atingiam a grande maioria das famílias, as vestimentas cumpriam cabalmente a sua missão, passando de uns para outros, mercê de uns pontos aqui, umas passagens ali e uns remendos onde o pano se rompia. Não havendo ricos, havia uma distribuição variável de pobreza nos vários aspectos de viver. Não obstante, o desejo de parecer bem, de ser mirado dos pés à cabeça, de estabelecer comparações, era uma realidade intrínseca de cada um, independentemente da idade.
Acontecia inesperadamente. Juntamente com o maço das cartas, postais e alguns jornais, na hora de, na taberna, em voz alta, ser lido o Correio, surgia um papel amarelo e fino dobrado em quatro partes a suscitar a curiosidade dos presentes, como se da roda da sorte se tratasse, na ânsia de saber quem seria o feliz contemplado. Era uma trouxa da América! Que ainda não era, mas passaria a ser depois da entrega daquele papel, nos Correios de Celorico da Beira. Rapidamente se ocultava, sem se amarfanhar muito, não fosse a troca invalidada, para se levantar o mais rápido possível. Da América distante, ficasse não interessava onde, tudo o que vinha era bom. As trouxas eram sempre oportunas: por se aproximarem datas festivas, por ter que se ir a um casamento, para mostrar brio no exame da 4ª classe, para ir à Vila ou mesmo porque os Domingos eram muitos.
Uma saca cilíndrica de tecido grosso, riscada com letras negras que não passavam de gatafunhos, se ia abrindo no meio da sala, com a porta da rua bem fechada, não só para saborear em família as surpresas amarrotadas mas também para poupar os olhares despidos dos vizinhos. Com uma sacudidela apressada e exclamações de contentamento, tudo ia ganhando forma à medida que se ia experimentando e adequando, nem sempre à primeira vez, o género e o tamanho da roupa. Tudo era lindo e ficava bem, no que concernia à cor, textura e feitio: as calças dos homens apenas precisariam de mudar o botão do cinto e subir ou descer as bainhas, os casacos largos, com mais uma camisola e as mangas dobradas, ficavam na perfeição; os casacos apertados, várias vezes vestidos e despidos, acabavam por servir a alguém, pois também não era para usar abotoados e os punhos da camisa tapavam o pulso… as roupas femininas denunciavam-se pelo volume reduzido e puxavam-se pela cor enquanto se adivinhava ser saia, vestido ou blusa…na certeza de ser possível alargar ou encolher e ficar mesmo à medida. Se acontecia uma mão-cheia de roupa transformar-se em cinto ou laço, aguardava-se até ao esvaziar do saco pela respectiva peça para contento redobrado de quem a encontrava ou desapontamento geral caso não passassem de inúteis acessórios. Nessa passagem de modelos em reboliço, em que ainda nada era de ninguém, sem acesso directo ao saco que ia perdendo a forma, íamos vestindo as peças mais pequenas na esperança de, por exaustiva redução de tamanho, também nos calhasse alguma. E calhava sempre! Uma saia de pregas desvincadas apenas a necessitar de menos altura e largura e um ferro de brasas… uma camisola que, ainda bem, tivesse encolhido, ou um vestido de menina que parecia ter sido feito para nós.
Fizeram os nossos encantos uns sapatos vermelhos, de salto alto, logo postos de lado, um atentado ao bem parecer, equilíbrio e piso da calçada. Por engano, se pensou, pois quem os enviou conhecia, da nossa aldeia, todas as realidades. Todavia, vezes sem fim neles se enfiaram os nossos pés de meninas transformadas em senhoras, nas brincadeiras de faz de conta…
Era uma alegria embrulhada em pano para ser exteriorizada no corpo e sentida na alma, enquanto de roupa de ver a Deus se tratasse. E, como os sentimentos se sustentavam de pessoas, coisas e tempo, assim este vestuário, sem identidade própria, haveria de substituir o mais usado para ser, uma vez mais, fatiota de festa de quem nunca recebia trouxas.
Longe no tempo e na distância desenrodilhamos memórias com calor de recordações e afectos numa tentativa de, com elas, nos revestirmos.