Acontecia de tempos a tempos, ao sairmos da escola, depararmo-nos no largo da Taberna com um movimento fora do comum fosse pelas características das pessoas, fosse pela singularidade das bagagens: eram as Comédias! Assim se denominava o grupo compreendendo várias faixas etárias, trajando de forma diferente do nosso habitual, alheado da realidade campesina, autênticos desconhecidos sem intenções de estabelecer relacionamentos. Estas discrepâncias mais aumentavam a nossa curiosidade e alongavam a espera até se fazer noite. Então, sem hora previamente marcada, o Largo começava a encher-se de gente ao redor de tapetes coloridos espalhados pelo chão onde alguns candeeiros atenuavam o escuro. Havia lugar para todos, simplesmente porque não havia lugares; de pé se assistia, do princípio ao fim, pois, se de pé se tinha trabalhado o dia inteiro não fazia sentido que outra posição se tivesse para a diversão. Contudo, os mais idosos, levavam um banco de casa para melhor suportarem as dores nas cruzes (costas). Se algum burburinho se gerava, era rapidamente abafado pela voz sonora do homem que, no meio da pista, categoricamente anunciava:
-"Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos, o espectáculo vai começar"!
Mulheres, homens e garotada, enaltecidos pelo invulgar e honroso tratamento, de imediato se consciencializavam que a actuação prometia e merecia toda a atenção. Num instante, tudo se transformava: a música saía a jorros daqueles instrumentos aparatosos, dançarinas vestidas de tule pareciam borboletas, trapezistas e equilibristas exibiam números nunca vistos, contorcionistas dobravam o corpo como se não tivessem espinha ( coluna vertebral); na confusão de pernas e braços realçava-se a cabeça quando, com a boca, alcançavam uma flor que todos pensavam não ser possível… de caixas vazias saíam pombas, cartolas deitavam lenços e mais lenços que se uniam num só…cães saltavam de arco em arco! As palmas, batidas com força, aplaudiam calorosamente o melhor espectáculo que ali tinha vindo! Entretanto, entrava em cena o homem que deitava lume pela boca! Era a admiração total! A mulher encostada à tábua onde iam sendo espetadas tantas facas, fazia fechar os olhos aos menos corajosos!
Confirmavam-se as nossas suspeitas. Embora subíssemos às árvores, déssemos cambalhotas na erva e soubéssemos encontrar ninhos, jamais seriamos capazes de fazer tais habilidades!
Inesperadamente, os Saltimbancos reapareciam e, após mais algumas piruetas, aproximavam-se da assistência estendendo chapéus e boinas a fim de recolherem a recompensa do seu trabalho. As moedas iam caindo, brancas e pretas de acordo com a generosidade e posses de cada um. Nós, que já há algum tempo guardávamos na mão a moeda que nos tinha sido dada, íamos ao seu encontro como, se de algum modo, a quiséssemos transformar na nota que não podíamos dar.
Quando a excitação ia passando e as palmas iam perdendo força, surgiam os Palhaços para dar azo ( ensejo) à nossa admiração e fantasia! As cabeleiras farfalhudas ( vistosas, garridas), as caras pintadas e brilhantes onde os narizes redondos e vermelhos sobressaíam, as roupas multicores, os suspensórios, as luvas e os sapatos enormes…os nossos olhos eram pequenos para poderem abarcar tanto fascínio! Era irrelevante o que dissessem ou fizessem, bastava acompanhá-los com o olhar porque tudo neles tinha uma graça imanente que superava a nossa imaginação e nos transportava, sem nos darmos conta, ao mundo efémero do deslumbramento!